Me, Myself and the Others, de Nuno Sousa Vieira
O atelier é um espaço de construções ininterruptas e o exercício da arte mais não é que uma prolongada autopsicografia, em que o artista se constrói mediante a prática. O resultado é muitas vezes um produto sedimentar de memórias, frustrações, sucessos e insucessos, mágoas e alegrias. É um processo silencioso, que opera na aparente suspensão do tempo e na expansão e dobragem do espaço.
Mas à construção precede uma desconstrução. Na exegese autopsicográfica – autobiográfica, se preferirmos – está implícito um esforço arqueológico de dissecação, de mudança de perspetiva, de subversão, em termos formais, do que é o cânone do ponto de fuga central. A alma é posta sobre a mesa, feita matéria plástica, desfeita da ordem que tinha anteriormente e refeita sob uma nova luz, um novo entendimento, talvez mais profundo e completo.
Em Me, Myself and the Others, Nuno Sousa Vieira ensaia essa construção do Eu através da desconstrução e escolhe o atelier como o espaço por excelência onde a maturação da alma e do corpo acontecem. Em qualquer dos casos, dá-se um esventramento, escancara-se a intimidade e o corpo, na sua complexa envergadura de ossos, músculos, órgãos, sangue, é desmembrado e novamente ligado.
Veja-se a porta. Objeto pivotante de entrada e saída. O artista sai, o espetador entra. Mudam-se as perspetivas. A modernidade vinculou a porta ao seu reducionismo utilitário, mas as experiências fenomenológica e poética dizem-nos que a porta não pode ser meramente dispositivo binário de “abre-e-fecha”. A porta é a materialização da proteção do exterior, a pele física e psíquica, por vezes amovível, que separa o conhecido do desconhecido, o desejo da impossibilidade, que recebe e recusa, que acolhe e expulsa. Na obra Corpo, que recebe a performance Corpo a Corpo, Sousa Vieira ausculta os limites da porta dobrando-a em várias superfícies e direções. Se considerarmos a pertinente reflexão proferida por Gaston Bachelard que interrogava se não haveria em cada porta um deus do limite, o artista parece aqui medir-se corpo a corpo com esse deus e esses limites. O repto introspetivo lançado a si próprio é, sem dúvida, um exercício hercúleo, um que desafia a gravidade, que molda o ferro, que existe no equilíbrio mínimo indispensável. Mas é um que mais tarde ou mais cedo parece confrontar qualquer indivíduo.
Na verdade, Me, Myself and the Others é uma recusa constante do reducionismo lógico ou do positivismo niilista que ofusca o pensamento moderno atual. É antes uma leitura poética, do que de poético tem a filosofia, da posição do artista no mundo. A adoção das suas proporções como medida das coisas e das obras, como acontece em Corpo e recuperada em Utopia (por sua vez, citação de Metrocubo d’infinito, de Michelangelo Pistoletto), reitera que para este exercício só a antropometria se afigura fiel ao pensamento poético, porque manifesta uma existência, um corpo sensitivo que existe de facto, que tem memórias e jeitos e gestos idiossincráticos.
Depois das portas, as janelas, também elas agentes de comunicação entre o interior e o exterior, regulador de luz e atmosferas, planos transparentes para a intimidade. Em Visão embaçada V, IV, VI, VII & II a ideia de transparência é exposta sob o signo da pureza impossível. Tudo é observado de acordo com um filtro que impossibilita a ideia de absoluto. A mediação que a realidade impõe compromete a ideia de uma pureza absoluta, pois que as experiências são variadas e os contextos sobre os quais partimos são telas filtradas – como os vidros das janelas – e matizadas conforme o entendimento de cada um. E ao sabermos que a série Visão embaçada ganha a forma das janelas do atelier, percebemos novamente a intenção desconstrutiva do espaço e do trabalho do artista e uma referência ao voyeurista em cada um.
O piso inferior da exposição é uma expansão das matérias já ensaiadas. Uma sala do atelier é cenografada para receber a série Folha, uma colagem de papéis sem sobreposições, em que cada plano coexiste na mesma planaridade; o pavimento do atelier é recortado e transformado num cubo – as superfícies são invertidas na sua lógica imediata quando o artista volta a face polida para o interior; e um recesso intimista é projetado nas traseiras da parede de Sala de exposição para acolher a peça Me, Myself and the Others, uma cadeira torcida e retorcida, montada na lógica avessa à padronização industrial e moderna, um objeto banal tornado único, qual testemunha silenciosa e passiva que recebeu em si o corpo de muitos e o repouso e devaneios de outros tantos.
É comum considerar-se que o processo artístico é uma construção solitária. Mas é possível também que muitas vozes habitem o espaço da obra em potência. Há sempre uma referência, um diálogo mental que contemporiza indivíduos e individualidades, mentores e professores, ecos de conversas que reverberam durante a criação. A cosa mentale não implica necessariamente solidão e isolamento. Encontramo-nos nos outros, descobrimo-nos nos outros, construímo-nos e desconstruímo-nos com os outros. O célebre verso de Rimbaud, “Je est un autre” é aqui recordado. Nuno Sousa Vieira convida-nos ao seu atelier na certeza de que o encontro com os outros é fundamental na arte e nas coisas da individuação. Quando Sousa Vieira decide partilhar o seu espaço expositivo com Eduardo Fonseca e Silva e Francisca Valador, que preparam por sua vez a Ceia, enfatiza essa partilha e comunhão como momentos ímpares de uma existência conjunta.
A circularidade da exposição e do fio narrativo que agrega as peças é manifesto de um elo também ele agregador entre indivíduos. Da mesma forma que uma peça se reporta à anterior e prepara a que se segue, também cada um pode encontrar nestas obras e nestas relações traços comuns de uma comunidade em preparação. Eu e o Outro já não são entidades separadas, mas elementos que coexistem num Nós.
Me, Myself and the Other, na galeria 3+1 Arte Contemporânea, até 9 de novembro.