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Pires Vieira. Trash — Lixo de artista

A concretização de uma peça como obra de arte nasce, muitas vezes, do processo em si, mais do que do objeto artístico final. Para Pires Vieira, o processo começou há cerca de 50 anos. O seu trabalho, embora se situe no domínio da pintura, incorpora outros campos artísticos como sejam a escultura, a instalação ou o vídeo. Há, em Pires Vieira, um processo de estudo pictórico que é, em Trash — Lixo de Artista, deixado visível como interpelação ao visitante. Até o título é provocatório, Lixo é uma palavra com origem etimológica incerta e mesmo a inglesa Trash tem origem desconhecida. Esta provocação não é, contudo, gratuita. Tem como objetivo questionar o cânone artístico, especialmente o pictórico, e os nossos dogmas acerca das diferentes manifestações que compõem as artes plásticas.

Ao mesmo tempo que esse processo da pintura e do seu estudo como campo expandido e alargado a outros domínios é deixado visível como parte da obra artística, Pires Vieira tira a tela pintada do seu local de eleição, a parede, para a apresentar das mais diversas formas, incluindo enrolada, retirando-lhe qualquer excesso de seriedade que ainda perdure. Assim é Alinhamento Rectangular Organizado (2019) em que 50 tubos acrílicos pousadas no chão, contêm telas pintadas enroladas; ou em Arquivo Geral em 7 Secções (2019), onde 49 caixas de acrílico pousadas em bases com rodas contêm pinturas que mal se vêm. É como se Pires Vieira assumisse as suas pinturas (também) como resultado de uma pulsão que é mais interessante que o objeto final. Em Arquivo Geral em 7 Secções o artista vai ainda mais longe e pinta uma cruz em diferentes cores na face das caixas, para nos obrigar a entender o conjunto que inclui a base com rodas, a caixa acrílica e a pintura como o objeto artístico final, ou seja, uma instalação, composta também pelas telas pintadas.

Pires Vieira reduz, assim, a pintura a uma componente da obra de arte, afirmando a sua acessibilidade e tornando-a mais uma coisa. Mas com esta “redução” o artista obriga-nos a, tal como Heidegger, questionar “O que é na verdade a coisa, na medida em que é uma coisa? Quando assim perguntamos, queremos conhecer o ser-coisa (Dingsein), a coisidade da coisa (die Dingheit). Importa experienciar o carácter coisal (das Dinghaft) da coisa.”[i] e é deste modo que o visitante se situa nesta exposição: tentando chutar a bola utilizada em Da Construção da Pintura (2019), andar entre as caixas acrílicas de Alinhamento Rectangular Organizado Alinhamento Rectangular Organizado, ou virar as bases de Arquivo Geral em 7 Secções, tentando ver melhor as pinturas por trás das cruzes. Infelizmente, por questões de segurança e preservação, tal não é possível. Mas conseguimos ter uma melhor ideia do que provocam as obras patentes em Trash – Lixo de Artista, se observarmos a forma como os visitantes se relacionam com elas.

Toda a exposição é, aliás, uma enorme provocação. Provocação ao sentir, ao olhar e ao pensar as questões artísticas. Partilhando o pensamento das mais recentes correntes da História de Arte, de que devemos olhar para esta História de um ponto de vista das afinidades e não de forma cronológica, as questões levantadas por Pires Vieira acerca da obra de arte e do seu processo de produção criativo e físico e ainda do seu lugar no Museu ou na Galeria são questões que têm vindo a ser debatidas desde cerca dos meados do Século XX, mas que mantêm a pertinência e continuam, por isso, a ser debatidas. Obras como Da Construção da Pintura que compreende uma pintura em tela de grande dimensão e a bola de basquete que serviu para o pintar, apresentadas logo no início do percurso expositivo e um vídeo, que se encontra a meio desse mesmo percurso e que mostra como foi pintada a tela utilizando a bola, criam a dúvida acerca de onde está a obra final. Se é a pintura, o que torna o vídeo apenas num registo documental, se o vídeo e aí tanto a bola como a tela são meras ferramentas, se no conjunto das três coisas (reportando-nos novamente a Heidegger). É, no entanto, o vídeo que torna o processo como parte integrante da obra, dando-lhe visibilidade.

Pires Vieira em Trash – Lixo de Artista, para além da questão sobre o processo de arte como parte integrante da fruição da obra, incide também sobre a questão do visível e do invisível na arte, com as suas telas enroladas e pinturas escondidas. Com referentes na abstração e no conceptualismo de Ad Reinhardt ou no impressionismo de Claude Monet a linguagem de Pires Vieira é feita precisamente das colagens de tudo o que, há 50 anos, lhe vai na mente.

Pires Vieira. Trash – Lixo de Artista, até 6 de outubro, no Museu Coleção Berardo, com a curadoria de Sandra Vieira Jürgens.

 

[i] Heidegger, Martin, A Origem da Obra de Arte. Edições 70, Lisboa, 2010, p.14

 

Com uma carreira em produção de cinema com mais de 10 anos, Bárbara Valentina tem trabalhado como produtora executiva, produzindo e desenvolvendo vários documentários e filmes de ficção para diversas produtoras entre as quais David & Golias, Terratreme e Leopardo Filmes. Atualmente ocupa o cargo de coordenação de pós-produção na Walla Collective e colabora como diretora de produção e responsável pelo desenvolvimento de projectos na David & Golias, entre outros. É igualmente professora na ETIC, no curso de Cinema e Televisão do HND – Higher National Diploma. Começou a escrever artigos para diferentes revistas em 2002. Escreveu para a revista Media XXI e em 2003 começou a sua colaboração com a revista Umbigo. Além desta, escreveu também para a Time Out Lisboa e é crítica de arte na ArteCapital. Em 2010 terminou a pós-graduação em História da Arte.

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