Ilhéstico, 30 anos de Porta 33
Todos sabemos como a vida nas periferias é mais difícil, sobretudo quando essa periferia está a cerca de 900 km de distância, com o Atlântico de permeio, principalmente no que diz respeito a assuntos e vivências culturais. Quando uma estrutura consegue manter o fluxo de trabalho regular durante 30 anos, mesmo em fases em que lhes foi retirado apoio financeiro, isso é fruto de muito labor e de muito amor à arte, neste caso por parte de Cecília Vieira de Freitas e Maurício Pestana Reis que há 30 anos iniciaram a Porta 33. Com a produção artística como objetivo principal, à volta da qual se inserem diversas atividades educativas, debates e inclusive residências artísticas e bolsas que permitem dinamizar o fluxo de criadores a entrar e sair do Funchal, já levou à Madeira artistas como Pedro Cabrita Reis, Fernanda Fragateiro ou Julião Sarmento e ainda alguns mais jovens mas já com um corpo de obra emblemático como Edgar Martins ou Vasco Araújo e possui, ainda, um invejável acervo artístico.
Para comemorar o trigésimo aniversário, a Porta 33 convida o curador Miguel Von Hafe Pérez, com quem mantém relação de longa data, que inspirado no Campéstico de Álvaro Lapa, e a partir das palavras ilha e doméstico, cria o conceito de Ilhéstico, uma espécie de olhar para dentro, para uma ideia de insularidade. Assim, cria-se uma espécie de percurso-diálogo entre 45 Jovens artistas madeirenses cujo trajeto artístico em algum momento se cruzou com a Porta 33 (Vítor Magalhães, exposto no espaço Cowork, por exemplo, foi o primeiro colaborador estagiário da associação) e vários locais do Funchal, sejam espaços museológicos sejam insuspeitos cafés. Considera Miguel Von Hafe Pérez que “o grande desafio foi a adequação dos artistas aos locais propostos. Que fizesse sentido e que fosse também um desafio para os próprios artistas.”
Ilhéstico propõe, assim, um percurso urbano que se quer pedonal e atento à cidade e ao que pode surgir de inesperado nessa relação pré-estabelecida, mas também na relação que o espectador (neste caso, o caminhante) estabelece em cada local com cada obra. Há obras de maior fôlego e intervenções subtis. Bons exemplos desta suspensão subtil são as intervenções de Dayana Lucas no Edifício Porfírio Marques e na Livraria Esperança (já de si uma obra de pasmar, fruto da sua dimensão e da organização espacial). Sobressalta-nos ainda a obra de Martinho Mendes para o edifício da Câmara Municipal do Funchal que podemos ver à distância através da janela da torre e que na luz do entardecer lembra um farol, ou ainda, a pintura de grande formato de Roger Paulino para o Mercado dos Lavradores. Ainda no mercado podemos ouvir a perturbadora instalação sonora dupla de Pedro Pestana nos lavabos. Também nos lavabos do Jardim Municipal, Sonja Camara envolve-nos em sons aquosos (e não só) que nos remetem para um espaço idílico, mas perturbador.
Podemos ver ainda obras em espaços específicos como o já mencionado Cowork onde, para além da obra conceptual e processual de Vítor Magalhães, podemos observar a reinvenção de uma história de Hugo Brazão e Cristiana de Sousa nas paredes e chão do pátio, ou diversas obras patentes no Museu Quinta das Cruzes: a reformulação da sua casinha de brincar de Fátima Spínola, feita a partir de talos de couve; os desenhos minuciosos fruto das caminhadas de Andreia Nóbrega; ou as fotografias de paisagens tornadas dismórficas por André Sirgado.
Na Casa Museu Frederico Freitas, os artistas representados estabelecem diálogos com a exposição permanente. Ricardo Barbeito apropria-se de histórias familiares da casa, que é também a sua, e recria esses pequenos momentos, incluindo a receita caseira de bolachas e as próprias bolachas, e Nuno Henrique, na Casa dos Azulejos que pontua o espaço com mosaicos de vidro assentes em areia das praias do arquipélago da Madeira.
A Fortaleza de São João Baptista do Pico recebe a obra conceptual inspirada nos depósitos de água existentes na ilha, de Duarte Ferreira, João de Almeida e Hélder Folgado. Este último expõe ainda na Capela da Nossa Senhora da Oliveira uma peça contemplativa que questiona a fé.
Todos estes artistas, que estão, na sua maioria, na diáspora, debruçam-se sobre questões de insularidade ou revelam um olhar sobre os locais onde estão expostos. Este percurso, converge para o espaço da Porta 33, onde podemos fruir de outras obras dos mesmos artistas e de mais alguns, como é o caso de Hugo Olim, que constrói uma narrativa delirante a partir de legendas em película 35 mm de outros filmes.
Esta convergência para o espaço da Porta 33 é como uma chamada a casa, ao conforto e significa o reconhecimento de uma relação que também é feita de afetividades entre a Porta 33 e os diversos artistas. Esta afetividade e cumplicidade expandiu-se de forma muito natural ao curador que considera que as obras patentes no espaço da Porta 33 são índices do que se passa na cidade e espera que “essa redescoberta [da cidade] seja também um sinal de que a arte pode criar esse sobressalto”.