Top

10ª edição do Bairro das Artes: Isto não é um fim

Trata-se da décima – e da derradeira – edição do Bairro das Artes. Ana Matos e Cláudio Garrudo, de quem partiu a ideia deste evento, dão a missão como cumprida. Pois que a cidade mudou e uma nova dinâmica se impôs. É um ciclo que se fecha, mas outro que principia. Isto não é um fim – asseguram, em tom de compromisso, no texto com que encerram o último catálogo.

Entrevista a Ana Matos e Cláudio Garrudo.

Carolina Machado Se me permitem, gostava de recuar um pouco – talvez um pouco mais do que o habitual numa entrevista sobre o Bairro das Artes. Que relação era a vossa com este Bairro, antes de o declararem das Artes, há quase uma década? O que vos trouxe até aqui? O que vos ligava, até então, à sétima colina de Lisboa?

Ana Matos – A ideia surgiu porque tanto eu como o Cláudio tínhamos uma relação muito forte com esta zona da cidade e, sobretudo, com a zona do Bairro Alto. Da minha parte, porque tenho a Galeria [das Salgadeiras] no Bairro Alto desde 2003. De facto, é nessa altura, quando estou a preparar uma informação para o site, que me apercebo de que a maior concentração de galerias na cidade de Lisboa estava na sétima colina. Havia cerca de quarenta galerias com uma atividade mais ou menos regular e a grande maioria concentrava-se aqui. Isso foi, para mim, uma novidade, apesar de ser habitué de galerias. Obviamente que ia a outras galerias além da minha, mas nunca me tinha apercebido desse facto. Achei que, se calhar, havia mais gente que não se teria apercebido dessa realidade. Em conversa com o Cláudio, tivemos a ideia de criar uma espécie de Noite Branca. Como tínhamos uma relação muito forte com o Bairro Alto, que acabava por ser o coração desse contexto, resolvemos chamá-lo de Bairro das Artes. No fundo, surgiu pela constatação desse facto e pela vontade de congregarmos, de alguma forma, as galerias que aqui estavam a desenvolver a sua atividade. [A ideia] era oferecer às pessoas a possibilidade de, em horário alargado, visitarem várias inaugurações em simultâneo – como acontece com as Noites Brancas, em várias cidades do mundo.

Cláudio Garrudo – Voltando à tua pergunta, à relação que tenho com esta zona da cidade… Eu diria que é umbilical. Eu nasci em frente ao Museu do Chiado, vivi aqui durante muitos anos – até há três anos – e em diferentes zonas da sétima colina. Portanto, é uma relação que eu diria natural. Mais tarde, essa relação estreitou-se pela colaboração com a Galeria das Salgadeiras, através de um projeto que tinha, na altura, com o Paulo Taylor – o I Love Bairro Alto. E com toda esta vontade de querermos trazer às pessoas aquilo que não se fazia da arte contemporânea nesta zona da cidade. Quando falamos do Bairro das Artes… Nunca encarámos isto no sentido estrito do Bairro Alto. [Trata-se] sim, desta zona da cidade, em que há – digamos – um triângulo: entre o Museu Nacional de Arte Contemporânea [Museu do Chiado], o Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva e o Atelier-Museu Júlio Pomar. Este triângulo congrega dezenas de espaços de produção artística da nossa cidade.

AM – Há uma outra caraterística [desta zona da cidade] que nos levou a criar o Bairro das Artes. De facto, esta sempre foi uma zona muito associada à prática artística. Havia artistas que tinham aqui os seus ateliês. Agora, infelizmente, por questões de outra ordem, já não é tanto assim, mas sempre foi um bairro muito artístico, também boémio, de intervenção, ligado aos jornais… Isso dava-lhe uma densidade, uma profundidade que nos pareceu interessante.

CM – Parece evidente que o Bairro das Artes parte, antes de mais, de uma vontade – da vossa vontade – de comunhão, de diálogo, de partilha. De que forma se concretiza, na prática, este desígnio? Trata-se aqui de uma reivindicação da ideia de comunidade artística – neste caso, à escala urbana?

AM – Sem dúvida que este projeto nasceu dessa vontade de promovermos e de divulgarmos a arte contemporânea. Na primeira edição, eram só galerias. A génese do Bairro das Artes tem a ver com as galerias. Havia a necessidade desse tipo de congregação. Não diria uma comunidade artística. Obviamente que, em primeiríssimo lugar, estão os artistas: a eles se deve tudo e é também em prol deles que isto acontece. [A intenção] era, talvez, criar um espírito mais cooperativo entre as galerias. Haver um evento em que os públicos pudessem circular de galeria em galeria, porque é muito difícil as pessoas se deslocarem só para verem uma exposição, uma inauguração. De repente, numa noite, terem sete ou oito inaugurações num percurso que se faz a pé… Foi uma das premissas do Bairro das Artes: um percurso que se pudesse fazer a pé. Hoje em dia, cresceu e já é quase uma maratona, mas esta ideia de bairro – o percorrê-lo a pé – seria sempre uma das caraterísticas do evento. Acho que, sobretudo, para lhe dar um espírito mais cooperativo: de congregação das galerias e de promoção dos artistas que essas galerias representam ou com quem colaboram. Depois, começámos a ter outro tipo de solicitações. No fundo, foi criar esse espírito de comunidade. Mas não diria artística, porque, na verdade, os artistas…

CG – Eu diria uma comunidade de agentes culturais…

AM – Exato.

CG – …que proporciona aos públicos uma dinâmica que não seria possível noutro dia. Temos todos a ganhar: públicos, agentes culturais, artistas. Foi também esse trabalho em rede que nos motivou a lançar estes dois projetos e a associação [Isto não é um cachimbo].

CM – De acordo com a informação divulgada, o Bairro das Artes quer-se inclusivo, verdadeiramente aberto – e diríamos, nesse sentido, democrático. De que modo tem contribuído para o envolvimento do público dito “de fora”, teoricamente apartado da atividade cultural e da cena artística?

CG – Acho que tem contribuído para essa democratização. Todas estas iniciativas são gratuitas. Em alguns eventos deste cariz, noutros países, as galerias e os museus pagam um fee. A direção da associação entendeu que esta iniciativa teria que ser gratuita: quer para os públicos, quer para os agentes culturais.

AM – Por isso, na noite do Bairro das Artes, também as entradas no Museu do Chiado são gratuitas. Fazemos mesmo questão. O objetivo é ser gratuito.

CG – Há uns anos, havia pessoas que não entravam nas galerias porque pensavam que se pagava: perguntavam “Posso entrar? Paga-se?”. A verdade é que isso nunca mais aconteceu. Acho que, hoje em dia, os públicos – mesmo esses de que falavas, fora do meio artístico – já se sentem muito mais à vontade. Vão ver. Podem gostar ou não gostar, mas pelo menos… Se esta peça não os toca, tocar-lhes-á aquela: têm um envolvimento com uma obra, não têm com a outra. Mas já se sentem muito mais fazendo parte, estando à vontade nestes espaços e neste percurso – que é todos, de certa forma.

CM – Portanto, têm constatado esse envolvimento por parte de quem não é da cena, do meio.

CG – Sim.

AM – Sim. Até porque, de há uns anos para cá, temos sempre um grupo de voluntários, que estão distribuídos pelos vários pontos do Bairro das Artes para chamarem a atenção das pessoas: “Está a acontecer isto, se quiser… Agora, às sete horas, tem uma inauguração não-sei-onde, uma conversa com o artista.”. Vão ter com as pessoas e encaminham-nas. A verdade é que, nos últimos anos, começámos a sentir um cruzamento mesmo muito grande de públicos. Às vezes, diz-se “cruzamento de públicos” só para se fazer um brilharete. Mas é mesmo verdade.

CG – Vimos pessoas na rua a marcar [no guia do Bairro das Artes]: “Já fiz isto!”.

AM – Sim, tipo passaporte: “Já fui a este!”. No início, conseguia-se ir a todos. Hoje em dia, nem sequer o recomendamos, porque se perde um bocado o sentido.

CM – Lisboa tem vindo a sofrer um indiscutível processo de transformação, que tem que ver, sobretudo, com a turistificação e a gentrificação. De que forma se tem vindo a fazer sentir esta mudança na produção e na receção do evento? É realmente possível envolver, em simultâneo e de igual modo, a comunidade local e a comunidade internacional?

CG – A local, sim. Temos feito isso. Agora, como é que essa comunidade local se tem cruzado com a internacional? Eu diria que ainda estamos numa fase muito embrionária, apesar de sentirmos… Há pessoas de fora, que organizam outros festivais, que já nos fazem convites e que vêm cá. Mas ainda não temos dados para podermos medir.

AM – No ano passado, por exemplo, houve uma coincidência de propostas artísticas: elas próprias tocavam o tema da gentrificação, do que se está a passar na cidade. O envolvimento da Ordem dos Arquitetos acaba por tornar isso muito mais evidente. Até porque, pela sua formação, terão mais presentes essas temáticas da cidade, daquilo em que se está a transformar. A nível de produção, fazemos os materiais bilingues e alguns contactos com a imprensa internacional. Constatamos que há, de facto, muitos turistas que vêm. Até porque o conceito da Noite Branca é também muito internacional, muito transversal. Quem gosta de arte contemporânea já está familiarizado. Houve um ano em que sentimos isso: pessoas que vieram de propósito, nesse final de semana, para o Bairro das Artes. Mas não temos dados concretos para podermos fundamentar.

CM – A esta distância, na iminência da sua décima edição, é já tempo de se refletir sobre o que se alcançou. Qual foi, afinal, o mais relevante contributo do Bairro das Artes no seio da atividade cultural e da cena artística deste “triângulo simbólico”?

CG – Levar ao público um conjunto de propostas artísticas que, na mesma noite, são de fácil acesso, de acesso cruzado, de partilha. Acho que a formação de públicos é a grande mais-valia que o evento, ao fim de dez anos, tem para dar.

AM – Isso é bastante visível. Se olharmos para trás, como isto começou… Não só por termos passado de quinze espaços para trinta e cinco – sendo que, entretanto, alguns deixaram de aqui estar, porque fecharam ou porque foram para outras zonas da cidade. Houve um aumento do número de espaços, mas também do número de pessoas. No ano passado, era muita, muita gente. São pessoas que já vêm de propósito a esta zona da cidade para as inaugurações, as finissages, os lançamentos, as conversas. São pessoas que, durante o ano, voltam. Isso é o mais importante. Não é só o número de pessoas que estão, naquela noite, a fazer o Bairro das Artes, [é também] saber que, daquelas pessoas, uma percentagem… Da minha experiência aqui, posso confirmar que as pessoas voltam e continuarão a voltar. Acho que essa formação de públicos, que traz massa crítica, que traz pensamento, que traz, possivelmente, a criação de jovens colecionadores, de hábitos culturais… Tudo isso é a mais-valia do evento.

CG – Acho que é um ciclo. Quando criámos esta iniciativa, não havia nenhum evento que chamasse a atenção para a arte contemporânea e com estas caraterísticas. Acho que, ao fim de dez anos, é o momento de refletir sobre novos ciclos.

CM – O que esperar do Bairro das Artes daqui em diante?

CG – Fecha-se um ciclo.

AM – São dez anos. É uma década. Foi uma decisão difícil, mas bem ponderada.

CG – A missão está cumprida. A cidade mudou.

AM – De facto, os dois principais objetivos estão cumpridos: criar públicos e passar esta ideia de que há muitas galerias aqui, de que há muita produção artística, de que há museus, de que há escolas… Isto é realmente um Bairro das Artes e continuará a ser um Bairro das Artes. Mas a cidade mudou. Agora, há outros espaços, outros bairros, que também estão a criar a sua própria dinâmica, os seus próprios programas. Achámos que, ao fim de dez anos, a missão estava cumprida. Considerámos que era chegado o momento de aparecer outra coisa.

CM – Quer isso dizer que o Bairro das Artes pode vir a transformar-se noutra coisa?

AM – Da nossa parte, enquanto associação, estamos sempre cá para colaborar. Temos outros projetos que queremos apresentar, provavelmente já para o ano. Sempre com esta política de promoção e de democratização – enfim, dar mais ferramentas para aproximar os públicos da arte contemporânea, em Lisboa e no país. Isso tudo mantém-se. O Bairro das Artes enquanto projeto e enquanto evento é que termina.

A não perder, na sétima colina de Lisboa: o último Bairro das Artes acontece a 19 de setembro, entre as 18h00 e as 22h00.

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos – Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o paradigma da derivação imagética a partir da imagem que deriva no constelar de uma dinâmica para-artística em Portugal (2016 —)».

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)