Da luz pela sombra: Ater, na Galeria das Salgadeiras
Diríamo-la, logo à partida, do avesso. Ater, a exposição veranil da Galeria das Salgadeiras, vem contrariar a ligeireza e a frivolidade da dita silly season, afigurando-se uma proposta não propriamente solar, mas, ainda assim, fulgurante.
Trata-se de uma ode ao negro sob um ponto de vista não necessariamente sombrio, dado que procura transpor a dimensão lúgubre – ou mesmo tétrica – que frequentemente se lhe associa. Quer isto dizer que, embora se deixe sugestionar pelo romance histórico de Marguerite Yourcenar, recuperando, de algum modo, o imaginário místico da alquimia, nada tem que ver com esse suposto obscurantismo. Ana Matos, diretora artística da galeria e autora do texto de apresentação desta exposição, estabelece, desde logo, uma correspondência com A Obra ao Negro, de 1968: desta, terá retido “[…] a pulsão de mudança e a vontade de alcançar a liberdade.” Pois que a formulação titular diz respeito à primeira – e, segundo se crê, à mais complexa – etapa de implantação da magnum opus. De acordo com a disposição tratadística, seria este o momento da cremação: a redução a cinza, à mais profunda negritude, tendo em vista a erupção química da obra magna. Marguerite Yourcenar fala-nos “[…] de um homem que faz total tábua rasa […]” do paradigma secular, no sentido da sua própria libertação – ou “[…] para ver depois onde o seu pensamento o conduzirá livremente.”
Evoquemos, a propósito, Giorgio Agamben: “Só pode dizer-se contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue apreender nelas a parte da sombra, a sua obscuridade íntima.” Afinal, é contemporâneo aquele que, não se deixando arrebatar pelo esplendor do seu século, é capaz de o transcender: de ver para lá do véu que o envolve, da convenção que o limita, da ordem que o governa, do conhecimento adquirido, da palavra dita; aquele que, não se deixando encandear pelo aparato do seu próprio tempo, consegue enxergar além, adiante – o que há ainda por desvelar. Pois que esse opus nigrum compreende, na verdade, uma operação libertadora de renúncia à ideia feita, ao preconceito – e, portanto, ao encontro da luz.
“Não quero ir onde não há a luz”, diz Fernando Pessoa – aqui citado por Ana Matos, mas também, segundo a própria, por Cláudio Garrudo, que apresenta Trindade #01 (2014), um registo fotográfico do quarto onde, em 1935, o poeta havia falecido. Impõe-se não tanto esse tom fatalista, notado pela autora, mas antes o eco de uma intimidade latente – que vem manifestar-se, sem redundância, no encadeamento pictórico de Daniela Krtsch: Remembrance #11 (2008), Untitled (2008), Remembrance #15 (2008), Remembrance #12 (2008), Untitled (2007) e Remembrance #19 (2008), da esquerda para a direita, firmam um cenário enegrecido, mas invariavelmente nítido, convocando a privacidade, a familiaridade, uma certa domesticidade – e, nesse sentido, a tal zona de conforto: “Levamo-la [a casa] connosco, porque dessa esperança de conforto também vive o Homem.” De facto, não se constitui como um dado adquirido, uma verdade absoluta, universal. Eis que a crise migratória se assoma, nesse texto, como o mais flagrante exemplo. Remete-se igualmente para a desigualdade social, económica e cultural ou a emergência ambiental: um estado de guerra que perdura.
“Alô, alô, marciano / Aqui quem fala é da Terra / P’ra variar, estamos em guerra”, canta Elis Regina. Sim, a Amazónia. Por esta altura, e em toda a parte, tudo se faz cinza. Rui Soares Costa e o que resta da paisagem, em Untitled (2017), da Winter Series, aludindo, até pela referência temporal, a uma outra devastação. Série N #20 (2010) e Série N #09 (2010), de Rui Horta Pereira, são também o rasto, o indício da vitalidade – do que ascende e persiste, rasgando o manto negro. Por sinal, um chão coberto de pneu triturado. Deparamo-nos, na mesma sala, com o rasgo de Maria Capelo, Sem Título (2018); mais à frente, num lugar apartado, com o de Augusto Brázio, Sem Título (2016), parte integrante do capítulo Bang!.
Só na escuridão se alcança a luz. Se em abundância, ela cega, ludibria. Atentemos. Debrucemo-nos sobre o alvo, sob essa luz ténue, zenital: um Cromeleque (2017), o foco que o mira, o cabo por onde se atravessa a corrente elétrica – pela lente de Jordi Burch. É “[…] nesta espécie de poço […]” que se cumpre o desígnio de Ater. Por fim, e além do desenho, da pintura e da fotografia, a escultura: um Módulo de Captação de Luz_01 (2017), com a assinatura de João Dias. Só pela sombra se compreende a natureza, a dinâmica da luz.
A Obra ao Negro “[…] reforça esse caráter visionário e de vanguarda que bem carateriza a prática artística.” Marguerite Yourcenar, Fernando Pessoa, Elis Regina, mas também Hal Foster, Jean-Luc Godard, Thomas More e Michel Pastoureau vêm insuflar uma leitura que se revela, enfim, iluminada: mais alva, menos óbvia do que se possa supor. Parte-se aqui de uma crença maior, inabalável: o artista tomado como o agente primeiro da contemporaneidade, capaz de “[…] tornar a experiência do mundo mais bela, […] mais crítica, mais incisiva, despertando a nossa sensibilidade e o nosso conhecimento.” Infere-se a prática artística como um processo catártico, mas, sobretudo, como uma forma de resistência.
Ater, para ver até 12 de setembro, na Galeria das Salgadeiras, em Lisboa.