Kraczevo – Anne Lefebvre na ZDB, em conversa com Sérgio Mah e Natxo Checa
Fotógrafa contemporânea de origem francesa, formada em pintura pela École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e em fotografia na Parsons School, Anne Lefebvre toma o negativo fotográfico como ponto de partida e trabalha a fotografia a partir do erro no ato de revelar, numa poética que se manifesta no carácter experimental da sua obra. A convite de Natxo Checa, Sérgio Mah conversa com a artista no espaço da Galeria ZDB que expõe Kraczevo.
Sérgio Mah – Anne, o teu trabalho é muito peculiar e relativamente inclassificável. Tem uma base fotográfica, de carácter fragmentário e apresenta-se em diferentes suportes e dimensões. Como surge a resolução plástica e pictórica no teu trabalho?
Anne Lefebvre – Começo por fotografar o que me desperta interesse: pode ser um objeto, um momento ou uma ação. A fase mais importante do trabalho está no laboratório, onde o negativo é a matriz. Durante o processo de ampliação, ocorrem experiências de tentativa e erro, de procura por um resultado diferente do anterior, num encontro de vários fenómenos do processo de revelação sobre papel branco, onde o surgimento da imagem é bloqueado, ampliado, repetido, sobreposto, entre outros.
SM – Verificamos uma constante atenção a pequenos objetos, a restos e a elementos soltos, numa deterioração que introduz impureza nas imagens. As vanguardas dos anos 20, tais como os movimentos surrealista, dadá e a Bauhaus, também se interessaram pelo carácter experimental da fotografia. Não negavam a reprodução, mas procuravam o carácter produtivo da fotografia, como referido por Moholy-Nagy, onde a experiência proporcionava novas relações e possibilidades discursivas. Sentes que o teu trabalho manifesta uma sensação de desconforto em relação ao mundo? Uma espécie de desolação ou desconforto numa procura constante?
AL – A escolha do cinza é propositada em detrimento de uma imagem clara e de acentuado contraste entre branco e preto. Joseph Beuys defendia que l’espoir je n’ai pas besoin (não necessito da esperança). Tento reviver a liberdade da adolescência que passei em Lisboa, escutar o presente. Há dias mais duros no processo, o trabalho também relata isso.
SM – Não há alegria no teu trabalho, no entanto não é triste nem deprimido. Nasce de um desconforto. Não recorres ao método canônico da fotografia de dar a primazia ao assunto retratado, à reprodução fiel. Fotografas o quotidiano. A escolha da fotografia é feita previamente ou é sempre casual?
AL – Ambas as situações são válidas. Começo por objetos quotidianos, estáticos, no entanto, por vezes também tenho uma ideia específica. É sempre o instinto que decide o desenvolvimento. Tenho amigos que pousaram para mim. As melhores fotos surgem quando ficam cansados.
SM – O corpo da obra pode não ser clarificador de uma temática ou relação com o mundo, no entanto o trabalho que fazes com as imagens, parece-me interessante a sensação de estranheza. Como trabalhas essas imagens?
AL – O absurdo interessa-me. A explicação das minhas peças surge mais tarde. Para mim a pintura é uma tradução subtil. A fotografia é um ato direto.
Natxo Checa – Nesta exposição não há vontade de narrativa, apenas a intenção de um exercício formal unificado pelo tom rosado das paredes, referência a uma das obras que surge da ampliação feita a temperatura que excede a aconselhada.
SM – A photographie plasticienne, expressão de origem francesa referente a imagens fotográficas intervencionadas plasticamente, como forma de reação e contradição ao canônico realismo da fotografia, acentuando a ideia de experimental, num desafio dos limites da prática fotográfica. O trabalho principal é da imagem, a fotografia é secundária. Como é feito esse processo?
AL – Quando abordo um negativo surge logo a vontade de uma sobreposição ou outra ação, associada a um determinado suporte material e dimensão. O processo consiste em passar de uma fotografia a um resultado. É o resultado que importa, independentemente das etapas, até ao momento em que o suporte não reage mais.
SM – Nesta exposição há alguma imagem retirada, impressa e exposta?
AL – Sim, foi tirada em Portugal.
NC – A construção da imagem vai ao limite do experimentalismo, não está relacionada com a abstração. Cada ampliação é uma obra distinta.
AL – Se considerarmos cada intervenção manual uma peça única, sim. No entanto, cada negativo não corresponde a uma só obra. Faço sempre duas provas: repito o motivo, mas intervenciono de forma diferente. Não aprecio a repetição.
Público – Que narrativa associas a cada imagem?
AL – Há sempre histórias pois advêm de encontros entre amigos, familiares, etc. Voltar aqui à ZDB é um gosto. Conheço este local desde que vivi aqui em Lisboa, é irónico. É uma viagem no tempo, de maneira circular, curiosa e interessante.
Joana Jordão – Nunca trabalha sobre o negativo, apenas sobre o papel?
AL – Uma vez comprei rolos velhos para fotografar uma bailarina. Quando os revelei, surgiu apenas branco. Recorri a químicos que são proibidos hoje em dia, para recuperar essas imagens – foi a única vez em que trabalhei o negativo. Nunca risquei sobre um negativo.
Kraczevo, de Anne Lefebvre, exposição de fotografia experimental pode ser visitada até 12 de setembro de 2019, na Galeria ZDB.