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O arqueiro tornou-se mimo – na instalação Bela e Má de Ana Vidigal

Na escultura Archeiro (1972) de Leopoldo de Almeida salientou-se o gesto, dramático, replicador e replicável, salientou-se a falta da seta e do “alvo”, que é também a falta de uma direção e de um fim. Com humor, o grandioso arqueiro tornou-se (também ou apenas?) um mimo ostentando ausências tangíveis e significantes. Esta ação sofrida pelo Archeiro foi exemplar para a experiência da instalação.

Perto da escultura, uma seta recortada de uma revista, inserida num pequeno monte (de gesso?), aponta para o arqueiro-mimo, (reforçando a ausência da seta), e fornece direções para nos movimentarmos. A experiência do movimento singular que fazemos na interação com este conjunto aberto de espaço-objetos-linguagem-ações é reveladora. Revela muito desta instalação, muito de nós e do mundo, e, revela parte do universo de Ana Vidigal.

Em Bela e Má existem diferentes jogos des/orientadores com o fim e a direção que experimentamos num tipo de perplexidade irresolúvel: nenhum sentido – “espacial” e/ou significante – único, exterior, total e final é possível.  Exercemos uma atenção focada, durante a observação reflexiva, e uma atenção difusa, à procura de orientações que encontramos sobretudo em “correspondências”, correspondências sensoriais, de memória, afetivas, etc.

Esses jogos humorados aparecem em formas diferentes e heterogéneas. Descendo a escadas de acesso, encontramos o meio do “comboio” instalado pela artista. É um comboio composto de velhas estantes industriais. Os chariots evocam tempos distantes, funcionalmente programam formas de armazenamento e organização, e o seu enfileirar sugere uma linha de produção. A atmosfera, pardacenta de pó, envolve os despojos deste abandonado estaleiro-arquivo e induz uma disposição aos nossos afetos, perceções e pensamentos. Essa atmosfera instalada é já uma ação sobre a sala de exposição permanente do museu. Uma atmosfera de humor crítico começa a colorir a nossa experiência e a incliná-la num sentido…

Entrámos a meio… se procuramos o início da instalação os nossos hábitos incorporados (as coordenadas de “de trás para a frente”, da “esquerda para a direita”) orientam-nos para um extremo do comboio. Começamos então verdadeiramente o nosso trabalho de espectador atento, mas esse lugar em que começámos não marca necessariamente o início da instalação. Precisamos de prudência com as orientações programadas e automatizadas nos nossos hábitos. A “economia” cega.

Depois, seguimos “naturalmente” a fileira. Agora, o nosso movimento de interação com cada estante industrial, confronta-se com uma organização vertical de ocultação e visibilidade. Nenhuma relação que possamos criar com a estante elimina a sua organização – física e significativa – das “prateleiras”:  irresoluvelmente uma está sob a outra. Para “ver bem”, que significa também ver totalmente, teríamos de optar por ver os elementos numa ou a noutra… mas consequentemente perderemos a relação entre si e connosco. Nas prateleiras, cada “objeto”, recolhido e agido, propõe um jogo.

O comboio possui níveis, mas também linhas que atravessam as várias estantes industriais. Contudo, a sucessão das linhas não é linear.  Por exemplo, a sucessão da linha de linguagem – as frases soltas carimbadas no plano “sobre” não formam uma narrativa linear, talvez formem um lugar de discurso, ou, um tom – a sucessão da linha das “memórias transformadas” da infância, no plano sob, não tem um desenrolar. Outra linha, a dos modos de fazer e “ação”, entretece um mundo de repetição e de irrepetível…de cada vez, uma perplexidade suficientemente diferente é criada.

As setas reemergem no outro limite do comboio, que não é o fim da instalação. Desta vez, a sua principal função é apontar para as correspondências (primeiramente cromáticas) entre os dois extremos da sala: as esculturas de Leopoldo de Almeida e o seu mimar paródico por Ana Vidigal. Percorrido esse espaço, num movimento de oito, (ou de infinito?), regressamos ao comboio, ao outro lado do comboio, na direção contrária. Continuamos o jogo…

Desencontrado do limite do comboio, encontramos o (inicial?) Archeiro e, um pouco afastadas, está o conjunto de esculturas de Leopoldo de Almeida. Diante delas, tomamos consciência que a sua perceção e o seu sentido foi des/orientado, mas não lhes aconteceu a queda cínica.

Os ready-made de Duchamp lançaram criticamente contra a majestade de um “é Arte!” a questão “é ou não é?”, o paradoxo “é e não é”, e abriram um “poder ser” à arte, repleto de novas materialidades, direções e fins, etc. Creio que este trabalho de Ana Vidigal (através dos gestos de des/orientar “objetos” carregados de virtualidades) explora uma forma de poder ser da arte e da vida através de um “e/ou” e, por isso, o seu humor a ser irónico, como era o de Duchamp, não inclui o gesto indiscreto de “desnudar”, antes reconhece cuidadosamente que o reverso indissolúvel de ocultar é mostrar, e vice-versa.

Até 30 de setembro, no Museu Leopoldo de Almeida, Caldas da Rainha.

 

Por Fernando Poeiras

 

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