Amanhã não há arte, de Carla Filipe
A metáfora da história das imagens é a da viagem. Da conceção, à produção, ao que se seguem a reprodução e a repetição, a imagem sujeita-se passivamente ao fluxo espácio-temporal das vontades e dos olhares humanos. E se os contextos, até há pouco, se mantinham acoplados às imagens – quais legendas de obras expostas em híper-galerias, em hiperespaços e tempos –, agora, mercê de uma cumulativa, compulsiva e pornográfica proliferação de fluxos e repetições – em tudo diferentes, aqui, das reproduções – já não existe o garante da origem e a salvaguarda do relato original. Porque as viagens são muitas. Porque a narrativa real, afinal, é a da conspurcação neoliberal, dos tempos hipermodernos, do esquecimento.
E a repetição esquece.
Atualmente, as imagens viajam na indiferença do espírito matricial que as conceberam. Se em termos pedagógicos e científicos é certo que a reprodução em pouco compromete a mensagem original, não é tão certo que venha a mostrar a parte oculta – e, portanto, verdadeiramente artística – do trabalho de conceção e produção. A descontextualização nasce da repetição exaustiva depois da reprodução, do desenraizamento da imagem e da submissão a um território que lhe é, muitas vezes, adverso, corrompido e corrompível. A repetição ad nauseam provoca a erosão da mensagem e, muitas vezes, da vontade do seu autor. E esse ad nauseam, não raras vezes, refugia-se também num ad libitum – num prazer, perverso e pornográfico (já se disse), de usar as imagens “a seu bel prazer”, satisfazendo uma líbido escondida, sôfrega de contentamento em ver, clicar, partilhar, repetir.
É então que a ontologia da imagem perde o peso que sempre lhe foi inerente. A imagem passa a conteúdo e, pelo caminho, pela viagem, perde autoria e redunda no anonimato. E de que vale ensinar a ver, a olhar, se está ausente nesse ensinamento a ética da imagem e da respetiva autoria? Quem produziu, onde, em situações; como assegurar o legado da imagem, as informações vitais que a suportam; como citar, quem citar, porque citar, nomear, e em que circunstâncias – itens que importa debater.
Recorrendo às bandeiras, à repetição e às imagens gráficas das lutas políticas, em Amanhã não há arte, Carla Filipe propõe uma reflexão sobre a viagem destas imagens, em jeito de luta política e sindical mais ou menos silenciosa. A exposição concebe um ambiente propício ao debate e à introspeção, ao conceber uma praça fictícia onde há lugar para a conversa, o repouso, a permanência e o fluxo constante de indivíduos. O ruído é causado pelas imagens e respetiva repetição, pela saturação de cores, pelas bandeiras de grandes dimensões que pendem do teto. Tudo o resto é bastante silencioso e a voz dá lugar à palavra e a uma espécie de periódico que colige as leis que protegem os artistas e os autores de imagens e obras.
É, sem margem para dúvidas, uma exposição política que procura um consenso e um equilíbrio num mundo dobrado ao neoliberalismo que poucas proteções oferece aos cidadãos e trabalhadores. Na verdade, se há algo que tem ficado sobejamente fora da história da arte, que privilegia o génio e não o artífice, é que o artista é um trabalhador. Antes do míster e do mistério, antes da canonização e da eternização das suas imagens e obras, o artista é um homo faber: de imagens, de esculturas, de instalações, etc. O ambiente de luta sindical em que Filipe nos envolve, devolve-nos esse lado esquecido do artista e da sua labuta diária, muitas vezes no limiar da indigência a que se vê obrigado a trabalhar – mas também a lutar – na sua vocação primeira.
Logicamente, há contradições que nem o texto curatorial de Luís Silva e João Mourão nem a própria artista, escamoteiam. Carla Filipe também usa as imagens e também as obriga à repetição, sem que com isso faça uma exegese completa das mesmas e dos seus autores. E as imagens e grafismos que usa são manifestos de uma ideologia se calhar contrária à do próprio museu e às instituições que o suportam. Contudo, seria injusto considerar que estes fatores deitem abaixo a posição sólida e consistente da artista e da curadoria. Na política, porque é feita de palavras, mas também de decisões, ações, manifestações orgânicas e imprevisibilidades, há sempre contradições, sem que isso venha a comprometer todos os ganhos alcançados durante a revolução. E porque a política aqui se reveste de um propósito revolucionário – e recordando os sábios pensamentos de Ursula K. Leguin – o que interessa verdadeiramente na revolução é o meio, não o fim.
Amanhã não há arte apela a essa revolução que ficou por continuar. As imagens do pós-25 de abril recordam-no. Mas também as das lutas da esquerda, das esquecidas lutas de classes, que podem agora sentir na arte a vibração da renovação e da reinterpretação.
As imagens adquiriram um território global e a tecnologia abriu a caixa de pandora para a desinformação, para a sedação moral e ética e para o desprezo. O desafio das imagens, agora, é muito superior às das viagens de outrora, circunscritas a uma geografia específica e delimitada. Mas esse desafio não é inferior aos homens que as contemplam e aos que as concebem – resta encontrar pequenas soluções (já não uma solução, ou a solução) para as suas agruras, sob pena de amanhã não haver arte.
Até 9 de setembro, no Project Room do MAAT.