Ana Vidigal + Hugo Brazão, na Galeria Diferença
A ironia é a força da juventude e o desiderato da inteligência. Na ambiguidade que propõe, é, por natureza, um conceito de camadas e nuances: do humor ao terror, da realidade ao fantástico, a ironia é a acutilância da verdade propositadamente fingida. Não é de espantar, portanto, que as grandes obras (dramáticas, literárias, visuais, etc.) que dela fazem recurso se venham a revestir de um dinamismo narrativo e interpretativo imenso. A ignorância dissimulada, assim traduz a expressão grega original εἰρωνεία, eirōneía, provoca, goza, exige e eleva a compreensão do sujeito no universo, das suas situações anedóticas, para depois se extrair – o que antes se julgava importante – a verdade.
Em Sal nos Olhos e O’ mice an’ men, respetivamente de Ana Vidigal e Hugo Brazão, temos acesso às múltiplas dimensões da ironia e das várias derivações geracionais e pós-modernas que tem vindo a desenvolver. Em qualquer dos casos, todavia, a ironia une dois artistas de idades distantes, cuja prática é diametralmente distinta, pese embora o campo pictórico seja também comum. Independente dos meios usados, é a ironia que faz vibrar as composições de Vidigal e as pinturas alargadas de Brazão.
Mas se em Vidigal a ironia se reveste de entornos políticos e sociais – como aliás o tem feito durante a sua já longa carreira – em Brazão é a comicidade pura do quotidiano e da ironia cósmica do ser humano que ressalta. Em Sal nos Olhos a narração é política, como o “lamento” do “fin de una era en Cuba”; de tempos que convergem num embate de inutilidade, como as duas raquetas de ping-pong, às quais fim lúdico é-lhes completamente extirpado; em que a dureza das situações é escamoteada em camadas ora de humor ora de terror – peixinhos que se assomam sobre um burrinho que dotado de consciência conclui: “principiaram a comer-me”. Os detalhes são imensos; as interpretações variadas.
Por seu lado, em O’ mice an’ men a ironia desliza para a pós-ironia, ou para a nova sinceridade, algo talvez em consonância com uma geração educada em imagens, em rede, nas quais abundam o uso de memes irónicos ou pós-irónicos. As situações são usadas para gozar, e o sério e o irónico perdem as fronteiras que antes haviam sido formalizadas pelas artes. Curiosamente, esta revisão estilística do discurso é também visível na própria expressão e formalidade das pinturas de Hugo Brazão. Não basta o conceito ser um apontamento sobre a ironia do homem partilhar o seu quotidiano com uma criatura tão mínima quanto insignificante e aterrorizante como o rato; ou como o conforto do homem é a cama preferida de um animal pestilento como o rato. Também o traçado hesitante, quase ingénuo ou naïf, das pinturas em jesmonite e a instalação tosca e imprecisa, de cores vibrantes, feita com recurso a aromas e a manteiga de amendoim, acabam por anuir no sentido de uma ironia materializada. Há algo de absolutamente primário – fundamental – que nos é devolvido depois de O’ mice an’ men: o riso – o riso de ver o homem a correr atrás do rato, a correr atrás do que é insignificantemente menor que ele e, ainda assim, capaz de fazer abalar o seu sossego.
São estes dois curiosos exemplos da discursividade da arte, da palavra antes ou depois da imagem, e do prazer de ler e ver o recurso a uma forma estilística tão antiga quanto a história das artes. Antes de se verem, estas são obras que se leem.
Sal nos Olhos e O’ mice an’ men, na Galeria Diferença, até 27 de julho.