De Outros Espaços, na Galeria Municipal do Porto
A Galeria Municipal do Porto apresenta De Outros Espaços, mais uma exposição concebida a partir da Coleção de Arte da Fundação EDP. Assim se dá continuidade ao trabalho de parceria realizado entre as duas instituições, relacionando as respetivas cidades, criações, práticas, discursos e, claro, artistas. Ficará passível de visitar até ao dia 18 de agosto.
Do mesmo modo que Michel Foucault [1] (1984) reflete sobre a contemporaneidade, a atual exposição da Galeria Municipal do Porto pode anunciar-se enquanto ocasião “da simultaneidade, da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso”. Através destas noções pode, com efeito, caracterizar-se o conjunto artístico que presentemente se expõe e que conflui numa forte, afirmativa e dinâmica junção, que importa conhecer. Reúnem-se quarenta e três artistas através de mais de setenta obras datadas entre os anos sessenta e a atualidade, assim atravessando um largo espectro que inclui e cruza diversas épocas e igualmente variados meios, temas e expressões.
A exposição teve, precisamente, como referência, a participação de Foucault na conferência no Cercle d’Études Architecurales, em 1967. Essa apresentação, posteriormente publicada como ensaio, consistiu no ponto de partida dos curadores, dela também se apropriando o título. Mantendo presente o que o teórico trabalha, a mostra desenvolveu-se e consiste num exercício que perpassa e põe em relação vários elementos que permitem observar múltiplos tempos, momentos e ocorrências que, conjuntamente, compõem a história dos artistas e da esfera da arte, mas também da própria História e do seu protagonista, o Homem.
Trata-se, acima de tudo, de refletir o espaço. Desde logo, o espaço imediato e físico, o da galeria, com as delimitações do próprio edifício, bem como a relação imediata aos jardins do Palácio de Cristal e, mais além, às ruas do centro do Porto. Ao mesmo tempo, está em causa o espaço em termos de contexto, ou seja, o artístico e o cultural, o espácio-temporal relativo à data e ao momento atual em que a exposição decorre. Também se poderão considerar desde os ateliers ou lugares dos artistas, de onde as obras provêm, onde foram pensadas, desenhadas e produzidas, ou ainda à origem das várias inspirações e influências criativas. É, pois, necessário compreender a noção de espacialidade em escala e alcance alargados, correspondentes às inúmeras e sobrepostas dimensões que os artistas e os próprios objetos transportam em si, na sua formação, significação e existência. Todo o espaço, independentemente da sua categoria, determina caminhos, discursos e linguagens postumamente tomados.
Tal ângulo reflete-se num complexo exercício cuja aplicação prática e materialização se conseguem por mérito dos dois talentosos curadores, João Silvério e Pedro Gadanho. Como ambos referem no texto que acompanha a exposição, procuraram abordar “noções de espaço imaginadas e desenvolvidas por artistas visuais, por oposição aos entendimentos da ideia de espaço provenientes de disciplinas científicas ou técnicas”. Tal premissa tem possíveis infinitas ramificações noutras questões, o que se reconhece ser realmente importante nas exposições de arte contemporânea, ou seja, a abertura para outros campos, com ações artísticas e reflexivas que não se mantenham fechados sobre si mesmos.
Michel Foucault discorre sobre uma heterotopia que “consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários lugares que por si só seriam incompatíveis”. Na atual exposição da Galeria Municipal do Porto, encontra-se, precisamente, uma seleção de trabalhos e de artistas que se afirma pela sua grande diversidade. A magnitude dos nomes inclui alguns dos já habitués do que se espera ver aquando de uma mostra que parte de uma coleção nacional, com o respetivo encargo de ser representativa da arte portuguesa. Encontram-se, assim, Lourdes Castro, com a obra Sombra Projectada de Milvia Maglione (1967), Helena Almeida com Mão atravessada por uma caixa interior (1990) e Nuno Cera cujo conjunto de nove vídeos FUTURELAND – The Real (2009-2010) questiona o espaço, o urbanismo e a arquitetura através de metrópoles, indivíduos, ações, pontos de vista e perspetivas que, expostos lado a lado, tanto se confrontam como dialogam.
Poderão também destacar-se Ana Vidigal, Bruno Cidra, Fernanda Fragateiro, Leonor Antunes e Ângela Ferreira, principalmente esta última que recebe o espectador à entrada da galeria com uma instalação de grande impacto visual, proporcional à sua qualidade formal e estética. A peça Monumento a D. Flavin (a uma utopia ideológica para contemplar), concebida em 2008, tem como inspiração o grande nome por si indicado, referência suprema do movimento minimalista. De modo igualmente nítido, a estrutura da instalação de Ângela Ferreira e o modo como se expõe estabelecem relação com o construtivismo russo, cuja geometria e rigor formal representavam as operações políticas e sociais, defendendo e instituindo uma arte vinculada à vida. Prosseguindo com um outro desafio de observação e de leitura, apresenta-se, já no interior do edifício, Love Map, Walking Distance (2016). É esta peça assinada pelo artista Rui Calçada Bastos que retém o espectador no início da exposição. Ouve-se e vê-se o resultado da conjugação entre dois média, erguendo-se um mapa híbrido de inabitual escala, com uma cartografia tão real quanto ficcionada que cruza seis cidades europeias, entre elas, Lisboa.
Também se evidencia o trabalho de Luís Nobre, cujo título é idêntico ao da exposição e que, pela sua fluorescente cor verde e particular figuração, sobressai em relação ao que o circunda. E, ainda, com uma particular materialidade e visualidade, uma peça de grandes dimensões de Francisco Vidal aviva a parede do fundo da sala, designando-se Utopia Luuanda Machine, Nam Barroque Wild Cats I (2005-2019). O artista, de origem angolana e cabo-verdiana, transfere as raízes africanas para este contexto português, o da cidade, da galeria e do projeto que se apresenta. A sua criação revela-se numa pintura de acrílico sobre cartão em madeira que reúne e entrelaça rostos e palavras cuja percepção só se permite mediante uma observação particularmente atenta. Tal como a sala de cinema sobre a qual Foucault reflete, é no fundo da área retangular da galeria que, numa tela bidimensional se encontram projeções de espaços tridimensionais. De certo modo, esta última obra sintetiza a dinâmica dos inúmeros fluxos que constituem a exposição e que a materializam enquanto densamente heterogénea e global.
Uma última vez, prosseguindo o exercício de refletir sobre a exposição a partir do texto do incontornável Michel Foucault, compreende-se que, em semelhança à nossa experiência e vivência no mundo, o que atualmente se expõe na Galeria Municipal do Porto constitui-se por um conjunto de jogos de linguagem em torno da ideia de espaço(s), de associações e de relações, como uma “rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada (…) que se vai enriquecendo com o tempo”.
[1] Texto em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1563769/mod_resource/content/1/FOUCAULT%20outros-espacos.pdf