Paulo Brighenti – Cascata
A antropomorfia é talvez uma das mais antigas manifestações artísticas da história da humanidade, logo a seguir às pinturas rupestres. Na literatura deu-nos as fábulas e ainda que Paulo Brighenti não utilize esta forma literária, as suas esculturas parecem querer contar histórias de tempos antigos.
Paulo Brighenti, tem uma sólida carreira artística e está representado em inúmeras coleções internacionais. Tem trabalhado sobretudo em pintura e mais recentemente tem-se debruçado sobre a escultura com especial enfoque na sua relação com a pintura. Na Galeria Belo-Galsterer podemos ver um pouco dos dois suportes em manifestações vegetalistas e antropomórficas. O título da exposição, Cascata remete para uma ideia de natureza forte e límpida, diríamos, até, ruidosa. Mas o que podemos ver na galeria é uma natureza sombria e misteriosa onde pensamos vislumbrar uma admiração por um certo classicismo.
A exposição é contida e está impregnada de poesia. Se pensarmos que a antropomorfia é também uma forma poética de pensarmos a natureza e a tornarmos mais próxima de nós (para quem acredita que não faz parte integrante dela), então, Cascata proporciona-nos um ensinamento. Nas várias obras expostas, Brighenti alterna luz e sombra com a mesma habilidade com que alterna a volumetria, transpondo-a da pintura para a escultura com igual mestria. A própria luz da galeria, difusa, está em consonância com essa elegância da penumbra que remete para locais antigos e pouco iluminados, por oposição às estaladas de luz que levamos nos dias de hoje em qualquer local público.
Árvore (2019), uma série de pequenos desenhos a óleo, mostram-nos árvores despidas, numa espécie de paisagem invernosa e despojada. Ao mesmo tempo que estas árvores nos parecem frágeis e quebradiças, a técnica utilizada, a encáustica, parece contrapor com uma enorme resistência à corrosão e ao passar do tempo. No fundo, a técnica faz parte da poesia da obra. Como se Brighenti nos quisesse mostrar que as coisas frágeis, ainda assim contêm em si, a capacidade de perdurar no tempo.
Na mesma parede vemos mais duas pinturas Bacchus #1 e Bacchus #2 (2019) que utilizam a mesma técnica para representar um Baco que nos mostra a língua. Não conseguimos, no entanto, deixar de pensar em Francis Bacon ao ver estes rostos grotescos que nos mostram a língua não como um insulto, mas como se nos mostrassem uma prova de saúde ou doença, ao jeito da medicina oriental. Estas pinturas remetem para as esculturas Bacchus #3 e Bacchus #4 (2019), cabeças que parecem caveiras fossilizadas, de onde saem folhas de cobre, quais oráculos que nos querem transmitir mensagens antigas. Estas cabeças são de cimento mas parecem pedra ou será que as esculturas de cimento parecem pedras que se assemelham a cabeças? Brighenti joga com as várias obras expostas com esta dualidade de interpretação.
A obra que dá título à exposição, Cascata (2019) é uma pintura de grande dimensão composta por duas telas dobradas sobre um varão que parecem ser tapeçarias. Tapeçaria (2016/19), exposta noutra sala, ao contrário do seu título, não o parece de todo, mas assemelha-se no seu padrão sobre fundo amarelo a um dos testes psicológicos de Rorschach. Todas elas contêm motivos que funcionam como padrão que se repete em simetria.
Pinturas de ar frágil, feitas com materiais que resistem ao tempo, esculturas que parecem pedras naturais e são, afinal, construídas em cimento que é o material menos amigo da natureza, pinturas que parecem tapeçarias. Nada em Cascata é de facto, aquilo que parece, num jogo que obriga à reflexão sobre o que estamos a ver.
Toda a exposição se estabelece assim, num diálogo entre escultura e pintura, figurativismo e abstração, fragilidade e resistência, fundo e forma, natural e construído, numa dimensão que é tanto da natureza e da tal cascata rodeada de cavernas e fósseis como é do cimento, da cera e do cobre, num gesto artístico de rasgo conceptual.