O >e(c(o< de Pedro Tudela na Kubikgallery
Pedro Tudela (Viseu, 1962) denomina para o título do seu mais recente projeto de >e(c(o<, título invulgar e particularmente gráfico, composto por um conjunto de letras e caracteres que formam, abrem e fecham a palavra eco. O artista explica que se trata de evocar a repetição, a réplica e, simultaneamente, explorar o prefixo de uma multiplicidade de outros termos, coisas e significados. Como indica Nuno Faria, no texto que acompanha esta mais recente exposição, na Kubikgallery, trata-se de utilizar o eco “como som produzido por uma reflexão, como som indistinto, rumor ou ruído; eco como prefixo: (eco)logia, palavra, discurso, linguagem, teoria; (eco)grafia, escrita, registo, estudo; (eco)nomia, regra, lei, uso; (eco)sistema, conjunto, grupo, combinação”.
Esta complexa apresentação torna-se tangível ao observar e ao conhecer detalhadamente a curiosa e singular instalação que determina o início da mostra, na sala principal da galeria do Porto. Sendo a peça mais envolvente, tanto do espaço como de quem o visita, revela-se como particularmente imersiva, sensorial e estimulante dos vários sentidos do espectador. Convoca o estado de urgência da atualidade ambiental, reconhecendo e apelando à necessidade de uma maior consciencialização e ação ecológicas. O alerta é proposto conceptualmente pelo artista e encontra-se estar fisicamente representado por uma corneta, cujas outras possíveis leituras e associações podem diferir entre a frenética e burlesca feira popular e outros contextos díspares, caso de estabelecimentos prisionais ou campos de concentração.
Enquanto instrumento assumidamente de vigília, encontra-se a principal estrutura desta obra, uma guarita de madeira, objeto de arquitetura particular para o qual Pedro Tudela concebeu um som melódico. A matriz deste último foi a gravação do embate da chuva na chapa metálica de um contentor, sendo o resultado, agora, acentuado pela estrutura estreita a partir da qual o som é emitido e reproduzido na galeria. Após alguma manipulação digital, a sonoridade que ecoa cativa e prende a atenção e o ouvido do espectador. A visão, por sua vez, fixa-se no sino pendurado dentro do abrigo, próximo do chão, objeto produzido pelo artista na Marinha Grande, localidade onde o próprio se alojou em processo de desenvolvimento criativo. O exemplar que se exibe na Kubikgallery é um dos vários sinos construídos nesse mesmo contexto, encontrando-se os outros instalados no MAAT – Museu de Arte Arquitetura Tecnologia, na sua atual mostra nessa precisa instituição, AWDIˈTƆRJU, com a curadoria de Miguel von Hafe Pérez. De facto, as duas exposições relacionam-se intimamente, não só na partilha desse elemento escultórico, como no som e na reflexão que lhes dá origem. Pedro Tudela confessa ser recorrente relacionar as suas obras e apresentá-las como contíguas, produtos das mesmas investigações, raramente criando peças isoladas ou descontextualizadas do demais percurso.
Também exemplo de interessante construção objetual é o que se expõe na montra da Kubik, resultado de um notável manuseamento de vidro, ao qual se acrescentam fragmentos de madeira encontrados na praia, nos quais se denota prévia manipulação do homem. Deste modo, o artista cruza o que produz com o que somente utiliza e cuja integridade física preserva. Trata-se de um exemplo de uma ação criativa e produtiva a partir de matéria-prima natural, orgânica, apresentada a par de um ready-made, conjugação que interessa particularmente ao artista.
Sem dúvida, Pedro Tudela é dotado da capacidade de concretizar e de recorrer às mais várias práticas, técnicas, formas e imagens, mantendo uma linha condutora coerente e indubitavelmente autoral. O seu aprimoramento criativo é ininterrupto, assim afirmando, com cada vez maior vigor, o seu lugar no contexto da criação artística contemporânea.
Após a densa experiência estética até então conduzida pela primeira e maior peça exposta na Kubikgallery, uma partitura gráfica estende-se ao longo de uma parede da galeria, entre uma sala e a seguinte, convidando à continuidade desta viagem. Propõe-se, então, retomar o percurso expositivo por meio de várias folhas dessa estrutura de escrita convencional de música, convertidas em suporte para a intervenção do artista. Sobre elas, Pedro Tudela atuou, recorrendo a vários materiais, desde a máquina de costura, com os seus rastos mecanizados, ao lápis de grafite de traços tão livres quanto o próprio gesto do artista. O exercício nas folhas projeta-se com expressão, movimento, vida e intenção. Oferece-se ao público enquanto partitura aberta, com leitura e interpretação livres e individuais a cada um. Não obstante, a sua observação requer-se atenta, dedicada e próprias: o espectador deve procurar as várias inscrições no papel, bem como contemplar o conjunto na sua totalidade, com um último e único olhar que percorre a obra a um mesmo ritmo e energia dos que se transmitem entre cada uma das suas constituintes.
É a partir daqui que o eco remete à simetria, ao rebatimento, por meio de dois objetos. Um primeiro, composto por duas foices da Beira Alta, de Mangualde, mimetiza a figura de uma cama, objeto do quotidiano comum, lugar do nós e do eu, este último tão individual quanto múltiplo, consciente e subconsciente. Seguidamente, um balde existe enquanto objeto isolado que aguarda, imóvel, pela projeção do seu recetor que se torna o outro lado, o eixo da peça, completando-a e finalizando-a. Dessa forma de reflexo, à similitude da imagem humana, surge uma peça inesperada e irónica que sugere significações e ideias tão introspetivas como científicas. O artista destaca como referência principal o processo de reprodução genética, a clonagem, algo que convoca não só questões práticas e físicas, como sociais, morais e éticas.
Por fim, é sob a forma de tríptico que se revelam as imagens que fecham esta exposição, capturadas nos Açores, na ilha de São Miguel, onde Pedro Tudela esteve em residência artística. As três fotografias, de qualidades imagética e estética indiscutíveis, fornecem uma visão invertida de elementos pertencentes a uma atmosfera que, em certa medida, recorda o que os restantes objetos expostos convocam: a atualidade, o antropoceno, o homem e o mundo em que ele habita, do qual usufrui e contamina, com as infinitas problemáticas e interrogações a que esta tão abrangente matéria possa remeter.
O mais recente trabalho de Pedro Tudela é tão rigoroso e marcante quanto delicado, composto por ações, linguagens e discursos assertivos e subtis. Assim se materializa e projeta no espaço uma série de objetos com evidente harmonia física, visual, estética, sensorial e experiencial. Trata-se de uma obra plena, completa e igualmente ampla, suscetível de experiências, significações e interações várias. Com efeito, assim se afirma uma das melhores exposições já alguma vez realizadas na Kubikgallery, imprescindível de visitar, até ao dia 13 de julho.