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Nocturno, de Sandra Cinto

Nocturno, instalação site-specific que a artista brasileira Sandra Cinto apresenta na Appleton Square (até 22 de junho), marca o seu regresso ao nosso país e assume uma componente reflexiva, em jeito de balanço, relativamente ao seu percurso que conta com mais de duas décadas de uma produção multidisciplinar que abrange desenho (preponderância) e pintura (em que se iniciou), mas também escultura e instalação, merecendo especial relevo os projetos de arte pública que tem desenvolvido. A exposição que apresenta em Lisboa, com curadoria de David Barro, assume o mesmo título da que a artista mostrou, no passado mês de março, na galeria Casa Triângulo, em São Paulo, cidade em que Sandra Cinto vive. O projeto, na capital portuguesa, assume-se na continuidade do anterior e traduz-se, uma vez mais, numa intervenção de grande formato, meticulosa e com uma forte componente introspetiva, que a artista desenvolveu no período de cinco dias, quase de forma ininterrupta. Interveio, com exceção de duas telas inéditas de pequenas dimensões, diretamente nas paredes do espaço expositivo da associação cultural, através do recurso a canetas, sobretudo, de ponta fina e tonalidade prateada com que definiu um traço rendilhado, simultaneamente preciso e subtil – que traduz a sua mais distintiva marca autoral.

Sandra Cinto privilegia quase sempre, e Nocturno reafirma-o, a construção de paisagens, simultaneamente naturalistas e oníricas, com uma forte componente gráfica, nunca habitadas/corrompidas pelo Homem. A sugestão, resultando do confronto do espectador com a obra, não aparenta ser a da queda num abismo, num buraco negro do qual se anseia sair. Ainda que sejamos plenamente absorvidos pela paisagem circundante, a sugestão é, antes, a de entrada num espaço desmedido, isento de fronteiras, libertador, tranquilizador e cativante. A necessidade de resgate não se equaciona, entregamo-nos porque, de facto, não apetece resistir às atmosferas noturnas, de uma cosmografia inventada ou de um oceano imaginado, que a artista cria com o seu traço subtil e assertivo em que se deteta a influência da delicadeza do traço japonês. São curvas e contracurvas em que baloiçamos (a presença do baloiço e as referências à infância são recorrentes na sua obra), são pontes que somos convidados a atravessar, sem acidentes, nostálgicos de um tempo a que apetece regressar. Sentimo-nos submersos ou talvez a sobrevoar, mas inevitavelmente em silêncio e sós, despertando neste confronto com a imensidão a consciência da nossa irrelevância e pequenez. É precisamente nesse espaço de despretensão e descompressão que tendemos a mergulhar ou voar na nossa direção, confrontando-nos com nós mesmos.

O título, Nocturno, enfatiza a relação privilegiada da obra plástica de Sandra Cinto com o universo musical, fazendo referência às composições que, assumindo precisamente a mesma designação, são revestidas de um cariz intimista e contemplativo, sendo muitas vezes concebidas para piano. A artista parece recordar-nos que perdemos, de facto, o hábito de olhar para cima, de observar o céu, mas também de olhar para dentro de nós, de contestarmos e nos libertarmos de amarras exteriores e interiores, de derrubarmos muros, de nos superarmos, de sonharmos, de atravessarmos pontes e de irmos ao encontro do Outro sem nos perder de vista. Citando-a: “o espaço ilimitado não está apenas fora do sujeito”. No texto que escreveu para a exposição, David Barro também sugere uma componente de contestação política presente no trabalho de Sandra Cinto que, a nosso ver, pode ecoar, subtilmente, através da dimensão que acabámos de descrever.

A abca (Associação Brasileira de Críticos de Arte), no âmbito da atribuição dos seus prémios anuais, distinguiu recentemente Sandra Cinto concedendo-lhe o Prémio Mário Pedrosa que visa destacar um artista de linguagem contemporânea. Outro artista incontornável no panorama brasileiro é Nelson Leiner, também reconhecido do público português (tendo integrado a icónica exposição Um Oceano Inteiro para Nadar, em 2000) que, a propósito do trabalho da artista, na sua fase inicial, afirmou: “O seu céu não é um ceúzinho de primeira comunhão. Você está querendo falar do sagrado da arte! A hora em que você ampliar a pintura e o espectador tiver uma relação corporal com o seu trabalho tudo vai mudar”. E mudou. E nós também mudamos.

Licenciada em História Moderna e Contemporânea, possui uma pós-graduação em Gestão Cultural e outra em Jornalismo. Fundou, coordenou e foi redactora da revista Artecapital. Foi redactora principal da revista Artes & Leilões e correspondente da revista Arte y Parte. Actualmente trabalha como mediadora cultural sobretudo no Museu Gulbenkian.

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