Ficção e Fabricação, no MAAT
Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma exposição construída por Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues, tem como pretexto a evocação das três décadas que se cumpriram sobre a invenção do Photoshop e a consequente banalização do uso das ferramentas digitais na fotografia, ocupa a Main Gallery e a Video Room do MAAT, e apresenta 68 obras de cinco dezenas de artistas.
A proposta curatorial organiza a exposição em três secções e distribui-se espacialmente por três espaços, onde as obras são apresentadas numa accrochage arejada, que reforça a individualidade dos trabalhos e convida a uma visita distendida e fluida.
Campo Expandido
A ideia de fotografia expandida tem sido fundamental para a legitimação institucional do medium fotográfico. Se as primeiras exposições acolhidas no museu ainda assentavam no suporte tradicional, rapidamente os artistas se esforçaram por alargar a materialidade e expandir o trabalho para fora dos limites da impressão em papel. Esta estratégia serviu de mediação e de ponto de intersecção entre os artistas que se interessaram pelo medium fotográfico e os fotógrafos que almejavam um lugar na galeria e no museu. A exposição apresenta alguns exemplos ortodoxos.
Aglaia Konrad (Concrete City, 2010) dialoga activamente com o legado de Lina Bo Bardi, reproduzindo em miniatura o icónico cavalete desenhado para o Museu de Arte de São Paulo, e oferece-nos um conjunto de memórias de matriz fotográfica e emocional materializadas em postais, maioritariamente escritos e circulados, que nos são apresentados numa mesa.
Veronika Kellndorfer (Stilted House, 2017) retoma o legado de Bo Bardi, serve-se do cavalete para explorar uma sequência de tautologias onde uma fotografia monocromática da Casa de Vidro, na sua exuberância de transparências e reflexos, é impressa numa chapa de vidro que, por sua vez, funciona como um diapositivo gigante cuja imagem é projetada na parede da galeria, criando no visitante uma incerteza que abala a confiança na finitude e na estabilidade das imagens fotográficas.
Ficção/Narrativas Sociais
Aqui somos confrontados com a humanização da fotografia de arquitetura, que não é um traço exclusivo da contemporaneidade, mas adquiriu uma nova dimensão nas décadas mais recentes, especialmente quando os artistas passaram a dirigir a câmara para os edifícios, e atingiu uma desidealização a que a fotografia de arquitetura pura e dura não consegue chegar. A fotografia de arquitetura tout court é arquetípica; os exemplos que aqui encontramos, pelo contrário, adquirem um carácter humanizado pela invocação do quotidiano. O funcionário que Jeff Wall (Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999) introduz na fotografia traz para a imagem o dia-a-dia onde a arquitetura desempenha um papel importante mas já não é indiscutivelmente a protagonista.
Nesta secção os edifícios e as personagens lutam pelo protagonismo. Predomina uma narrativa prévia embebida nas imagens, um plano de conteúdo que é preponderante e, em muitos casos, a criação da imagem não é mais do que um catalisador para essa mensagem, que frequentemente é política. É o caso do Cinema Karl Marx, fotografado por Mónica de Miranda, que tem um histórico de inversões de sentido: de lugar e símbolo da dolce vita colonial, passando a emblema ideológico e culminando num véu poético, tecido pelo seu definhar funcional e sublinhado pelas enigmáticas figuras femininas assomadas à varanda.
Fabricação/Reconstruções Digitais
A secção final conduz-nos a uma reflexão sobre um novo campo epistemológico e ético que se abriu com o Photoshop e que não cessa de nos inquietar. Se a fotografia sempre se serviu da Retórica para persuadir e manipular, com a naturalização da colagem verosimilhante — que as ferramentas digitais têm aprimorado — o sentido das imagens passou a ser construído através de um processo que inclui novas etapas.
Os trabalhos de Isabel Brison e Beate Gütschow recorrem à mesma estratégia construtiva, mas vão desaguar a lugares fenomenologicamente opostos. As artistas partem de recortes, de fragmentos autonomizáveis de edifícios, para, através de delicada e cuidadosa montagem, construir novos edifícios em que o plano da expressão é totalmente credível e verosímil. Em Maravilhas de Portugal #3 (2008) é a racionalidade que nos impede de admitir a coexistência no mesmo edifício de realidades socioeconómicas incompatíveis. Em S Nr.14 (2005) nenhuma racionalidade nos compele a recusar a verdade do edifício que nos é apresentado e apenas a nossa aculturação é capaz de nos advertir que se trata de um edifício moderno que não existe mas que podia existir.
Há muita retórica na série WalmArt (2006) de Jonathan Lewis onde, através da simples pixelização de fotografias do interior de supermercados, somos confrontados com o poder redutor do marketing sobre as nossas vidas e com a solidez impositiva das marcas. Lewis testa os limites da simplificação em busca do estado limite onde as imagens já perderam todo o detalhe sem, contudo, perderem a legibilidade e a faculdade de nos remeter para a realidade da nossa condição alienada de consumidores.
Uma das grandes qualidades desta exposição é o carácter descontraído da curadoria que não faz uma interpretação demasiado literal, tanto do conceito unificador da exposição como dos seus núcleos internos, e permite que as obras nos convidem a explorar territórios marginais que são, por isso, bastante fecundos.