Dois anos e meio
O título que Nuno Nunes-Ferreira atribuiu à exposição que apresenta na Balcony Contemporary Art Gallery (até 20 de maio), dois anos e meio, corresponde ao período que o artista dedicou quer à pesquisa quer à materialização, extremamente perseverantes e minuciosas, que culminaram neste projeto que reflete uma expressiva matriz conceptual, minimalista e performativa. Em exibição, com curadoria de Luísa Santos, dez peças inéditas (divididas entre técnicas mistas, instalações escultóricas, um livro de artista e um vídeo) que incitam à participação ativa do espectador e reafirmam a prática arquivística como central no seu corpo de trabalho.
Em “dois anos e meio”, o autor reflete criticamente (com apontamentos de ironia e sarcasmo) sobre a passagem do tempo e sobre preservação da memória, encarando os arquivos – que o próprio constrói a partir de notícias e publicidades impressas – enquanto fiéis, mas nem sempre fidedignos, guardiões de ambos. Se, por um lado, a medição do tempo não é linear, a memória é, indiscutivelmente, seletiva e manipulável. Aliás, manipular arquivos é assumir, em consciência, a criteriosa e subliminar manipulação de que somos alvo. Na mostra Nuno Nunes-Ferreira dirige o holofote da sua pesquisa, matematicamente rigorosa, para a sociedade atual, do eterno espetáculo, da velocidade ininterrupta, do consumismo imediatista e insaciável, do mediatismo injustificado e do voyeurismo entorpecedor. Devolve-nos, em jeito de clarão, a consciência do sensacionalismo e do vazio inconsequente de muitos dos conteúdos veiculados pelos jornais, sendo a maioria das notícias, com que diariamente despertamos, forjadas q.b., viciando-nos num perigoso alheamento de nós mesmos.
Foram sensivelmente 365 os dias em que Nuno Nunes-Ferreira se dirigiu ao café do costume para recolher os jornais do dia anterior. Sendo o polémico Correio da Manhã o jornal diário mais lido no país, muito provavelmente foi a principal fonte de matéria-prima para as quatro telas de grandes dimensões que abrem a exposição (no piso superior da galeria). O artista acumulou, recortou e colou centenas de letras dos títulos das principais notícias de diferentes secções de jornais para conceber “Primavera”, “Verão”, “Outono” e “Inverno” (títulos, de resto, integrados em cada uma das telas, deixando ao leitor o desafio de os descobrir). Presumível referência a épocas idas, em que a medição da passagem do tempo era ainda parcialmente ditada pelos ciclos da natureza e não por falíveis tecnologias mais ou menos de ponta. Do tempo em que para se saber a quantas andávamos tínhamos que dar corda ao relógio. Talvez também invoque os saudosos períodos em que o hábito de adquirir e ler jornais era uma efetiva realidade e a hipotética morte da imprensa escrita uma realidade impensável.
Também “Arquivo VII”, “Arquivo VIII” e “Arquivo IX” partem da atividade de respigar recortes de jornais, sendo constituídas por, respetivamente, 7, 12 e 24 dossiers que se assumem pastas de arquivo, albergando micas (nas quais os recortes estão dispostos seguindo uma criteriosa ordem sequencial e cronológica). Os dossiers estão colocados em estantes, ao lado das quais existe uma mesa para sugerir e estimular a consulta por parte do visitante. “Arquivo VIII”, por exemplo, é composta por doze dossiers em que cada um representa um mês do ano, estando organizados de modo a que cada página corresponde a um dia do mês. O livro de artista “Chegar aos 100” traduz-se num dossier composto por 100 páginas, sendo cada página dedicada a um recorte de uma notícia de um aniversário, abarcando um arco cronológico do primeiro ao centésimo. Tennis Match é composto por 365 vídeos amadores (correspondendo, portanto, a um ano) e centra-se na prática de “sabrage”, técnica de origem napoleónica para abrir garrafas de champanhe usando um sabre.
Ao visitar “dois anos e meio” e ao refletir sobre a prolífera relação da arte contemporânea com os arquivos, não podemos deixar de invocar a exposição Archive Fever: Uses of the Document in Contemporary Art que, em 2008, com curadoria do recentemente falecido Okwui Enwezor, inaugurou no ICP (NYC). A mostra, focada na fotografia, explorou a variedade de práticas através das quais diferentes artistas se têm apropriado, investigando, reconfigurado e até mesmo construído de raiz conteúdos e estruturas de arquivo, jogando simultaneamente com a noção de tempo, a construção da memória histórica e, por inerência, do próprio conhecimento. O título escolhido pelo comissário (que em 2006, aqui mais perto, foi responsável pela 2ª edição da Bienal de Sevilha) faz referência quer à obra que Jacques Derrida Archive Fever: A Freudian Impression, bem como às reflexões de Michel Foucault em The Archaeology of Knowledge. O arquivo é também entendido como um instrumento ao serviço de um sistema discursivo normativo e regulador, que legitima mais do que questiona ou transgride – encontra-se, de certo modo, ao serviço do poder instituído e dos ideais que se pretendem perpetuar. Nuno Nunes-Ferreira traz também essas reflexões para dois anos e meio, onde cabem as últimas décadas, numa das exposições mais interessantes, como tal imperdível, de que desfrutámos nos últimos tempos.