O Jardim Zoológico de Cristal
“As pessoas vêm cá à procura de ver o doente. Como num jardim zoológico. E ficam surpreendidas quando não os identificam no meio do coworking ou quando os artistas não estão mesmo fisicamente cá, porque fazem o seu próprio horário. São pessoas livres e autónomas”, diz Sandro Resende. Neste Manicómio não há muros, vigilantes, auxiliares ou médicos. Quebram-se as rotinas rígidas das instituições hospitalares para dar liberdade e criar responsabilidade. Os dez artistas estão espalhados por todo o open-space do NOW_Beato sem nada que permita distingui-los dos restantes residentes. O único sinal visível da presença do Manicómio ali é um néon que diz “based on a true story” e as paredes transformadas em galeria de arte.
“Os horários são feitos por eles e a vontade de trabalhar também é feita por eles. Não é por nós”
Há 20 anos a trabalhar com os doentes mentais do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, também conhecido como Júlio de Matos, Sandro Resende e José Azevedo sentiram a necessidade de criar um espaço fora dos muros da instituição e do estigma que simbolizam. Apesar de todas as intervenções artísticas nesses muros e das atividades do P28 que abriram o espaço ao público dito normal, continua a existir um “lá dentro” e um “cá fora”. “Os muros são muito estigmatizantes, não só para o doente, como para o médico, para o familiar, para o técnico. A presença da bata branca. Não estou a dizer que não é necessário, é super importante, mas é estigmatizante. Eles vivem ao lado do McDonald’s e nunca provaram um hamburger de lá. Os próprios doentes sentem-se mal em sair. Eu não posso ir lá fora, porque sou doente, sou maluco. Toda a vida ouviram isso”, diz Sandro Resende.
Inicialmente, a ideia era que o Manicómio tivesse um espaço próprio, mas Sandro e José perceberam que não podiam cair no erro de criar um segundo Júlio de Matos, não podiam isolar-se outra vez. Surgiu então a hipótese de se instalarem no NOW (No Office Work) um espaço de coworking no Beato, em Lisboa. Aqui, a pessoa “normal, digna e condigna” vem em primeiro lugar. Depois o artista e só a seguir a doença. Isto não quer dizer que não lhe seja dada a devida importância, mas a perspetiva é sempre a de integrar comportamentos e de normalizar o discurso. Os dez artistas que fazem parte do arranque deste projeto são todos doentes externos das suas respetivas instituições hospitalares e continuam a ser seguidos regularmente nelas. No entanto, se precisarem de um psicólogo ou de um psiquiatra fora desse contexto – como qualquer um de nós pode precisar – o Manicómio tem acordos com clínicas que lhes podem facilitar o acesso. Durante um ano de residência, têm também uma bolsa que inclui ajudas de custo (transportes e alimentação) e uma remuneração mensal. O que nos leva a outro dos objetivos do Manicómio: a empregabilidade, palavra difícil de dizer e ainda mais difícil de concretizar quando falamos de arte e de pessoas com doenças mentais. “A taxa de desemprego é muito alta entre doentes mentais. Nenhuma instituição promove isto, nós queremos fazê-lo. Estamos a fazer contactos com empresas que nada têm a ver com arte para que qualquer um deles possa ir trabalhar para lá se quiser ter um trabalho fixo, ter um emprego normal [fora da arte] e um ordenado. A nossa ligação a essas empresas já as fez ver que estas pessoas são tão válidas como outras quaisquer”, explica Sandro Resende.
Embora tenha financiamento durante quatro anos (uma parte vem de um concurso público do Turismo de Portugal, cinco bolsas são pagas pela Fidelidade Seguros a título de investimento cultural, uma bolsa é financiada pela Central de Cervejas e têm também parceiros estratégicos como a Fujitsu, entre outros apoios) fala-se do Manicómio enquanto marca, porque se pretende que o projeto tenha uma estrutura que vai crescendo de forma articulada e sustentável, criando mecanismos de subsistência para todos os envolvidos. Num futuro próximo está prevista a abertura de um restaurante Manicómio, fora do NOW_Beato, quer irá dar emprego a mais sete pessoas com doenças mentais. Há também a galeria de arte que promove a venda das peças dos artistas e a edição dos livros de autor: um já foi lançado (Anabela, pela Stolen Books) e estão mais quatro na calha para este ano. Da mesma rotativa sairá uma revista só com entrevistas realizadas pelos artistas Manicómio, uma iniciativa semelhante a um projeto vídeo no qual Sandro Resende e José Azevedo juntaram os pacientes do Júlio de Matos a figuras como Pedro Cabrita Reis e Jorge Molder.
Os artistas em residência vão também começar a dar workshops e 80% dos lucros destas aulas revertem para os próprios. O primeiro é a 23 de Abril: How to make a Monster, com Anabela Soares.
“Num problema há sempre uma oportunidade”
De certa forma, a escolha destes dez primeiros nomes começou há cerca de cinco anos no contexto de um projeto encomendado pelo então Ministro da Saúde Paulo Macedo. Sandro Resende e José Azevedo mapearam o que existia a nível de trabalho artístico nas instituições públicas e privadas ligadas às doenças mentais e descobriram que as atividades desenvolvidas não têm apoio especializado nem incentivo à altura. Ainda assim conseguiram encontrar mais de 50 artistas com qualidade acima da média. Para a primeira residência do Manicómio, desses 50 foram escolhidos cinco com os quais já tinham uma relação próxima e outros cinco que conhecem menos bem. Isto permitiu criar uma dinâmica de trabalho autónoma em que os mais “antigos” ajudam os outros a integrarem-se sem ser necessária a presença constante de Sandro Resende e José Azevedo. “Eles não precisam de ter um vigilante. Só precisam de alguém que dê uma opinião sobre o trabalho deles e eu e o Zé damos quando é necessário”, diz. No trabalho destes artistas, realça a autenticidade e a entrega. A vontade de produzir porque há uma necessidade que tem de ser satisfeita, independentemente de haver compradores para as peças ou de um dia a possibilidade de criar se esgotar. “Aprendi com eles que não preciso do outro para trabalhar. Eles estão-se muitas vezes a marimbar para o outro, para as convenções sociais, fazem porque têm vontade de o fazer. É honesta a necessidade de trabalhar freneticamente”.
Embora sejam dez, nem todos querem ainda que o seu nome seja divulgado. Para além da já referida Anabela Soares, os que têm dado a cara ao Manicómio (que é como quem diz ao manifesto) são Pedro Ventura, Francisco Gromicho e Cláudia R. Sampaio. Embora mais na retaguarda são também públicos os nomes de Filipe Cerqueira, José Maria, Bráulio e Carlos.
Desde que abriram portas, são muitas as pessoas com doenças mentais que os procuram com a necessidade de ter um espaço digno para desenvolver o seu trabalho artístico e confessa que é aflitivo não ter capacidade para os acolher. “A pergunta é sempre o que é que nós podemos fazer mais”, diz Sandro. A resposta está num horizonte próximo e passa por criar mini-Manicómios nos vários espaços de coworking “irmãos” do NOW em Lisboa. Mais tarde, quem sabe, expandir esta ideia para outras cidades.
Apesar das duas décadas de trabalho com pessoas com doenças mentais, Sandro Resende não sente este caminho com o peso de uma missão de vida. “Se o sentisse com esse peso não o estava a fazer, certamente. Nós gostamos muito de fazer. É tão autêntico o nosso fazer como é autêntico o fazer deles. A nossa questão sempre foi como é que vamos criar um espaço que seja tão autêntico como eles. A resposta: com o crescimento natural, deixando as coisas seguir o seu curso”, explica com um sorriso.
Uma das grandes recompensas deste percurso, especialmente desde a criação deste projeto, são as mensagens de pessoas inspiradas pelo discurso descomplexado sobre a condição de ter uma doença mental. Pessoas que também têm uma doença mental diagnosticada e que nunca o admitiram a ninguém.
Este Manicómio tem as portas abertas e todos são bem-vindos.