Museu de Histórias Naturais
Em 2018, estou no escritório do meu amigo editor, recém-chegado de Moçambique, onde visitou o Museu de História Natural. Fala-me dos exemplares únicos e cobiçados do acervo, que incluem fetos de elefante em vários estádios de desenvolvimento. O meu amigo editor refere a simplicidade do museu, a sua existência discreta e ingénua. Falamos das condições nos países africanos de influência portuguesa. Nunca estive em Moçambique, só em Angola, mas passou por lá família. Viveram lá avós, nasceram lá tias, uma mãe passou lá férias. Creio que não lhe digo que o meu bisavô foi governador-geral dessa antiga colónia. De pouco adianta mexer num passado que não conheço bem. Mas hoje, um mês depois, tropeço pela mão da minha mãe numa nota biográfica desse meu antepassado, nascido em Lamego no século XIX (cidade onde eu passaria várias férias no século XX por o meu padrasto ter lá tido avós maternos e ainda haver casa de família). Descubro que, em 1933, o meu bisavô instalou o Museu de História Natural de Moçambique, na altura com outro nome, no edifício onde agora se encontra. Na altura talvez já existisse no acervo um precioso celacanto, animal que se acreditava extinto, mas que foi encontrado no litoral da África do Sul em 1938. Tal como os fetos de elefante que também lá há, conservado em formol, nadará para todo o sempre sem sair do lugar.
Um primo do meu bisavô, Augusto Cabral, também teve um cargo governativo numa província moçambicana. Esse seu parente, ao que parece, teve um filho chamado Augusto Cabral, biólogo, escultor e pintor que dirigiu o Museu de História Natural de Moçambique entre 1977 e 2006, ano da sua morte. No jardim do museu há murais do famoso Malangatana. Malangatana era apanha-bolas no Clube de Ténis de Lourenço Marques, que o biólogo frequentava. Um dia, o jovem pede-lhe um par de sapatilhas que já não use e Augusto Cabral diz-lhe que vá buscá-las a sua casa. Quando lá chega, Malangatana encontra-o a pintar e fica fascinado. Além das sapatilhas, recebe tinta, pincéis, umas placas de contraplacado.
Platex. Ouvi muitas vezes essa palavra em criança. São placas de contraplacado já quase fora de circulação (platex, lusalite, amianto, os materiais do futuro pertencem ao passado), mas sobre as quais o meu pai pintava. O meu pai começou a pintar depois de voltar da Guerra Colonial, onde esteve colocado na região do Niassa, não muito longe de Vila Cabral, nomeada em honra do avô da sua futura mulher, então ainda por conhecer. Quem o ensinou a pintar foi a sua primeira mulher, hoje falecida há muito. E a sua segunda mulher aprenderá com ele. O meu pai passará o resto da vida a pintar, vendendo a interessados com quem se cruza. Um deles Marcelo Rebelo de Sousa, muito amigo do filho de Malangatana, que lhe porá mais no envelope do que ele lhe pediu pela obra, quando um dia o encontra em Cascais. (A escrita torna-se difícil quando os tempos verbais se misturam assim, mas acredite, leitor, que digo a verdade.)
Aquele meu parente biólogo e pintor dirigiu o museu, investigou cobras, serpentes, lagartos, tartarugas, sapos e rãs, foi responsável pela manutenção das colecções de aves, mamíferos e insectos, colaborou em programas infantis da Rádio Moçambique, divulgando conhecimento sobre animais, e publicou um livro chamado Borboletas de Moçambique (quando uma borboleta bate asas em Moçambique…), repleto de ilustrações suas e com um prefácio do biólogo e escritor Mia Couto. Agora, com o meu amigo editor, tento escrever para crianças sobre patos e tartarugas, com ele a ilustrar, eu filha de pintor, ele filho de escritor. A ver se não me esqueço de lhe falar no Celacanto, conto surrealista de Mário de Carvalho que um amigo em tempos me mostrou e de que agora me lembrei.
Achamos sempre que a história está extinta, até ela dar à costa novamente. Incorremos no equívoco vezes sem conta. Como o celacanto, nadamos sem sair do lugar.