Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero
O Prémio de Curadoria Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC vai já na sua terceira edição e distingue um projeto de curadoria de arte contemporânea. A vencedora, Marta Rema, apresentou uma proposta de exposição coletiva sobre o desejo de pensar o silêncio nas suas vertentes corporal, artística, visual, temporal, política, real e imaginária.
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero questiona o lugar do silêncio e no mundo contemporâneo, mas também levanta questões sobre que tipos de silêncio podemos ter e qual o seu significado para diferentes pessoas. No fundo, o repto que a curadora lançou na sua candidatura ao Prémio de Curadoria e que pretende que se repercuta no visitante é: o que comunicamos com o silêncio e de que forma o fazemos.
Na era das redes sociais e em que as pessoas não têm pudor em ouvir música ou ver um filme no telemóvel sem auscultadores num qualquer transporte público, em que a poluição sonora está em níveis preocupantes, pensar o silêncio é tanto uma urgência, como uma forma de pensar a solidão e o isolamento.
Há obras que nos transmitem a sensação do silêncio, como Azimute (2019) de Pedro Vaz, onde a contemplação de uma vasta paisagem branca nos remete para as vastidões geladas das estepes, onde pouca vida existe e onde a ligação a uma ideia de solidão é inevitável. João Maria Gusmão e Pedro Paiva em Sistema Planetário (2010), mostram-nos uma imagem que simula uma órbita planetária, essa vastidão que imaginamos silenciosa, ainda que os planetas não sejam planetas, na linguagem conceptual habitual na dupla de artistas. Na mesma linha, as obras de Fernando Calhau Perfect Blank e Dead End (ambas de 1994), remetem-nos para uma ideia de vazio, de percurso solitário, através da palavra escrita. É através da palavra Ouve-me (1979) que Helena Almeida suplica nas fotografias que, mesmo sem falar ou ver, quer ser ouvida, numa alusão à condição feminina. Ainda sobre a condição feminina e sobre o estereótipo da orientação sexual, Ana Pérez-Quiroga apresenta em Stereotype Poof! um conjunto de 37 retratos de lésbicas (um dos quais um autorretrato), mostrando-nos com aqueles rostos tão diversos que não há qualquer determinismo fisionómico na opção sexual. Cecília Costa com O Tempo não Tem Som (2018) relaciona o silêncio com a passagem do tempo, mas troca um imaginário tic-tac por um conjunto de ampulhetas que efetivamente não têm som e que congelaram o tempo dentro de si. A obra menos silenciosa e que nos acompanha durante a visita é Shiu! (2018) de Luísa Cunha, uma obra sonora que ecoa em todo o espaço e nos lembra de manter o silêncio ao mesmo tempo que o impede. Júlio Pomar apresenta uma série de desenhos feitos quando esteve detido na prisão do Forte de Caxias em 1947, o lugar onde o silêncio é tanto um imperativo como uma inevitabilidade. O conjunto de artistas é bastante diversificado e para além dos já mencionados, inclui obras de: Ana Pissarra, João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira, Jorge Molder, Josefa d’Óbidos, Paulo Lisboa, Raul Domingues, Ricardo Jacinto, Rui Chafes, Sandro Resende e Sara & André.
Em Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero o tipo de obras é tão eclético como os artistas representados. O conjunto não tem necessariamente afinidades artísticas ou formais, mas une-os um tema, que ainda assim não esteve necessariamente na origem das intenções dos artistas, mas sim na vontade da curadora. Numa época cheia de ruído, o silêncio pode ser uma poderosa forma de comunicar o que não queremos dizer ou fazer, pode ser uma eficaz e poderosa arma de combate, pode servir para um ajuste de contas, para calar uma discussão. Terá perdido o seu peso em existência, mas não perdeu certamente em importância. Uma proposta curatorial sob o tema do silêncio é, nestes tempos, um grito político e social e talvez uma das mais úteis ferramentas de comunicação.