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Stray Gods | Deuses Extraviados na Galeria Graça Brandão

Arte contemporânea e sagrado, é (ainda) possível esta relação?

Procurando responder a esta pergunta, a exposição Stray Gods | Deuses Extraviados, que inaugurou a 24 de janeiro na Galeria Graça Brandão em Lisboa, amplia e atualiza o diálogo entre arte e religião e afasta-se substancialmente do passado glorioso.

Se, desde tempos primevos, a dimensão religiosa alimentou a produção artística, tendo conhecido apogeus na Idade Média e no Renascimento, hoje essa hegemonia perdeu-se, em parte devido à progressiva sobreposição da ciência à religião e ao rápido desenvolvimento tecnológico.

“Deus está morto!”, afirmava o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, sugerindo o fim da religiosidade e o advento de um “novo tempo” em que o homem passaria a ser o centro enquanto definidor de regras e valores. Ainda assim, isso não impediu que, em 1999, o papa João Paulo II tenha transmitido, numa carta dirigida aos artistas, o desejo da igreja em dar continuidade ao diálogo entre arte e religião, missiva que alguns acolheram mas que a maioria descartou.

Interessados em compreender o que pensam os artistas, Marta Mestre e Gonçalo Pena, organizadores da exposição, reúnem treze abordagens cujas origens se distribuem geograficamente entre Lisboa, Porto e Brasil. Os vários trabalhos relacionam-se de um modo mais ou menos pessoal, mais ou menos distante (mas sem dúvida pertinente) com questões relacionadas com o religioso que, na sua etimologia, remete para o latim “religatio” ou “relação”.

Deuses extraviados, deuses vadios, uma ideia de fé perdida, ou não, a exposição partiu dos registos fotográficos feitos por Ursula Zangger durante o ritual do artista Albuquerque Mendes realizado em 1976 na Póvoa do Varzim a propósito do III Encontro Internacional de Arte em Portugal. Neste ritual, intitulado “As três mortes de São João Baptista”, Albuquerque Mendes percorre as ruas da cidade nortenha usando vestes que lembram as eclesiásticas e carrega às costas um andor.

Presidindo a procissão, a determinada altura ingere uma lata de tinta branca. Gesto que incorpora uma crítica aos valores da pintura num contexto pós-revolucionário e que remete para a consubstanciação cristã em que o corpo e o sangue de Deus se encontram nas substâncias do pão e do vinho.

Para além dos registos do ritual e de uma outra obra também em exposição, Albuquerque Mendes concebeu uma nova peça composta por um prato com pão molhado rodeado por velas colocado no chão da galeria. Faz assim referência a uma religiosidade pagã invocando as oferendas a orixás ou a outras entidades espirituais comuns nas práticas religiosas afro-brasileiras. Estas oferendas são muitas vezes vistas nas encruzilhadas das ruas de várias cidades no Brasil, país onde o artista permaneceu durante bastante tempo.

Para a definição das linhas gerais da exposição, para além do trabalho de Albuquerque Mendes marcado por uma pesquisa entre o sagrado e o profano, também o de Sara Morgado Santos assumiu um papel preponderante, sendo que o próprio título da exposição é o mesmo de uma das suas peças. O corpo de trabalho da artista remete para questões relacionadas com a religiosidade e com o seu lado simbólico existencial tais como interioridade, medo e culpa. Duas gerações e práticas distintas que encontram um denominador comum em questões relacionadas com o sagrado.

Assim, a exposição Stray Gods | Deuses Extraviados procura ir ao encontro de uma espécie de questão primordial que se prende com a relação entre a arte e religião. Relação que em tempos foi fundamental para a produção artística e que se veio esvaindo, essencialmente durante o século XX, altura em que é relegada para um plano secundário e em que o próprio Deus é substituído. Karl Marx refere essa transformação do Deus religioso num novo Deus, o capital.

Este retorno às origens poderá ser metaforizado através da imagética da caverna, símbolo do nascimento, do ventre materno e local onde ocorrem rituais de iniciação, ao mesmo tempo que poderá simbolizar uma passagem para o submundo constituindo uma antecâmara de acesso a um mundo subterrâneo. Não é por acaso que se apresenta uma obra de Joaquim Rodrigo, cujo trabalho se encontra entre a representação e a abstração e as figuras são reduzidas a signos. A tela remete para a pintura parietal pré-histórica africana e para o universo aborígene acerca do qual o artista nutriu interesse.

É também neste sentido que a exposição se inicia com uma peça da artista brasileira Sofia Borges que constitui uma espécie de mitologia pessoal, onde aparece representada a cena de uma peça de teatro dentro de uma caverna composta por fragmentos de fotografias recortadas.

Por outro lado, os trabalhos de Bernardo Simões Correia, português, e Cristiano Lenhardt, brasileiro, centram-se na ideia de recuperar uma espiritualidade à luz da contemporaneidade podendo associar-se ao movimento New Age que propõe um novo modelo de consciência moral, psicológica e social que se opõe à ortodoxia e conservadorismo das religiões organizadas.

Bernardo Simões Correia invoca objetos estranhos, totémicos, símbolos do sagrado ou do profano dentro de uma determinada colectividade, associando-os à inscrição “if we burn, you burn with us.”. Uma ideia de colectividade trágica e ameaçadora, que inverte o sentido lúdico e divertido associado às figuras apresentadas sob a forma de vasos de cerâmica.

Dos três vídeos de Cristiano Lenhardt destaca-se Superquadra-Sací no qual o artista contraria a ordem e ideia de progresso associada à racionalidade do plano urbanístico implementado pelo arquiteto Lúcio Costa nos anos 50 na cidade do futuro brasileira, Brasília, no qual estão inseridos os quarteirões habitacionais denominados “superquadras”, através da figura popular brasileira de Saci-Pererê.

Estabelece um encontro disruptivo entre uma fé esperançosa progressista marcada pela razão associada ao plano da nova cidade e uma figura da cultura popular e das mitologias arcaicas brasileiras, um negro de chapéu vermelho, perneta, que vem para “fazer bagunça”. Curiosamente o plano urbanístico de Brasília é organizado em forma de cruz, ou seja, de encruzilhada, fluxo, ligação.

Dripping Hand de Daniel Barroca é talvez das peças mais perturbadoras da exposição e que comporta uma maior carga histórica. Uma mão cerâmica oca pendurada no tecto encontra-se suspensa no ar e é cheia com tinta negra. Sujeita ao peso da tinta e à acção da gravidade, devido à sua fragilidade, acaba por se partir e derramar o líquido sobre uma pequena elevação de areia no chão.

A mão de Daniel Barroca remete para a narrativa descrita no capítulo 5 do Livro de Daniel, na qual a mão de Deus aparece, durante a grande festa organizada pelo último rei da Babilónia, Belsazar, e escreve com fogo na parede palavras que anunciam a destruição do reino, “Mene Mene Tequel Parsim”. Imediatamente a seguir toda a cidade da Babilónia é destruída. “If we burn, you burn with us” diria Bernardo Simões Correia.

Em alguns momentos da exposição, as paredes são preenchidas com papéis de parede que compõem diferentes padrões. A dupla Von Calhau propôs três desenhos que citam materiais sagrados que lembram pictogramas pela forma como são representados. Uma vez que são repetidos exaustivamente formam um jogo visual cujo ritmo invoca uma espécie de mantra.

Esta serialidade ritualística é retomada por Luísa Mota com a peça Goddess Women Silk Piece. Trata-se de uma faixa de seda impressa com 23 metros de comprimento que segundo a artista permite a transferência de qualidades energéticas quando usada por alguém a quem denominou de ativador. O ativador deverá colocar uma das extremidades da faixa de seda sobre a cabeça e puxa-la com as duas mãos lateralmente em movimentos repetidos de levantar e baixar os braços de modo a que todo o comprimento do tecido percorra o seu corpo.

No dia da inauguração da exposição assistiu-se a uma performance que o exemplificava. Quem esteve presente viu-se confrontado com diferentes figuras, essencialmente femininas, deusas, muito coloridas, à escala do corpo, que iam aparecendo e desaparecendo em função do movimento dos braços do ativador. Um efeito absorvente e hipnotizante que remete uma vez mais para a ideia de repetição muitas vezes associada a rituais e a mantras religiosos.

Talvez o exemplo de uma evidente alusão do “sagrado contemporâneo”, para além do vídeo St. Francis and the Stigmata de André Poejo, sejam as pinturas de Leonardo Rito que retratam precisamente narrativas bíblicas. Já através da peça de Luísa Jacinto, a religião é evocada de um modo abstracto, numa resposta que vem do interior da própria pintura; na tela, uma escada que ascende a algo que não se consegue vislumbrar e que sai fora dos seus limites físicos. A pintura, de um negro onde afloram subtilezas e arquiteturas especulativas distancia-se do corpo de trabalho que conhecemos da artista. Este aspecto de “pintura impensada” motivou a sua escolha para integrar a exposição.

Um conjunto de diferentes energias em torno de um pensamento acerca da religiosidade na arte contemporânea encontra-se reunido no trabalho de treze artistas provenientes de diferentes geografias, de várias faixas etárias, sendo que muitos deles raramente ou nunca foram vistos em Lisboa, motivo entre vários que valem uma visita.

Até 16 de março na Galeria Graça Brandão, em Lisboa.

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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