Fernando Lanhas vs Álvaro Lapa
Fernando Lanhas e Álvaro Lapa são duas referências centrais e emblemáticas no panorama da arte contemporânea portuguesa, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX. Refletir sobre eles pode fazer-se, primeiramente, de modo separado e distinto, atendendo às características e particularidades de cada um enquanto criadores e personalidades. Porém, ao avançar na leitura e na análise dos trabalhos dos dois artistas e ao pensar sobre as suas motivações e processos criativos, surgem aspetos comuns que estabelecem sólidos laços entre ambos. É, pois, de um modo, à partida, inesperado e, de seguida, inequívoco, que se revela uma forte relação entre Lanhas e Lapa, o que conduziu à concretização da exposição L vs L, na galeria Quadrado Azul do Porto, espaço que, ele próprio, também se destaca pela sua importância no país.
Fernando Lanhas (1923-2012), formado em Arquitetura pela Universidade do Porto, transferiu para as telas a geometria, o rigor e o equilíbrio estrutural que praticou nos seus estudos. Desenvolveu um espólio notável que se destacou e afirmou perante os seus contemporâneos e que se mantém enquanto um dos mais valiosos trabalhos na pintura portuguesa. Embora as suas primeiras incursões na prática artística da tinta e do pincel tenham surgido na forma de figuração, Lanhas rapidamente encontrou o seu lugar na exploração abstrata da espacialidade, orgânica e arquitetónica. Assim se desenhou um corpo de trabalho que se caracteriza por uma abstração pura, inscrita através de linhas retas concretizadas com uma distinta acuidade e acompanhadas de escolhas cromáticas tão simples como prodigiosas. Foi considerado, por muitos, a nível nacional, o pai do abstracionismo geométrico, título que dificilmente lhe será, alguma vez, contestado.
Álvaro Lapa (1939-2006), por sua vez, foi uma das figuras mais enigmáticas de toda a esfera artística portuguesa, o que se distingue tanto na sua expressão mais plástica como na escrita, práticas nunca dissociadas, ambas materializando as profundas reflexões e dúvidas que o artista colocava filosoficamente. Por conseguinte, tudo o que Lapa produziu apresenta-se como um mistério difícil ou mesmo impossivelmente descodificado, concretizado de uma forma brilhante que abisma o olhar do espectador que o observa. É através da pintura e do desenho, de uma representação pouco explícita e concebida no limite da fronteira com a abstração, que a sua obra pictórica se revela de uma forma muito própria, podendo afirmar-se que é um dos trabalhos mais sui generis alguma vez realizados.
Fernando Lanhas e Álvaro Lapa, ambos à frente do seu tempo, abalaram, marcaram e influenciaram uma época e as gerações de artistas que lhes seguiram. Criaram e produziram obras que, como raramente ocorre, devido à sua qualidade e valor indiscutíveis são capazes de transcender juízos de gosto. Como referiu o curador da exposição, um dos diretores da galeria Quadrado Azul, Gustavo Carneiro, os dois nomes são incontornáveis e aproximam-se, desde logo por uma semelhante motivação, a vontade de compreender o Universo e o Homem, ainda que os tenham explorado sob prismas e formas distintas. No caso das preocupações de Lanhas, sabe-se que decorriam, essencialmente, de questões do foro científico, das áreas da astronomia, geofísica, arqueologia, antropologia e etnografia. Relativamente a Lapa, a sua obra remete para várias influências literárias e filosóficas como, por exemplo, Stéphane Mallarmé, acompanhadas de um contínuo, permanente e indelével caráter autorrepresentativo.
Enquanto uma das maiores afinidades entre os dois artistas destaca-se o facto de que, apesar de nenhum deles ter estudado pintura, foi no traço e do rasgo do pincel que ambos encontraram as suas ferramentas de pensamento, estudo e investigação pessoal. No caso de Lapa, tal particularidade é mais acentuada na medida em que ele fora integralmente autodidata na sua incursão no universo artístico. Ainda em comum, o tempo, a passagem deste e o seu significado foram elementos sempre presentes na criação artística de ambos, o que não só caracterizou os seus trabalhos como pode, agora, servir de prisma de observação sobre os próprios autores. Algo importante que os descreve é, assim, uma singular atemporalidade, característica que qualifica a presente exposição enquanto atual, pertinente e revelante.
Na Quadrado Azul expõem-se sete obras de cada artista, as quais, atendendo às suas divergências formais e plásticas, encontram-se dispostas em paredes distintas, frente a frente, num poético confronto. A experiência que decorre destes dois trabalhos, quando observados isoladamente, não será, por certo, semelhante, um deles que irrompe impetuosamente da tela, do seu suporte e ecoa em redor e outro cuja qualidade estética e perfecionismo formal se instalam e apropriam do espaço. Respetivamente, as peças de Álvaro Lapa interpelam e desafiam o espectador, o que é moderado e estabilizado pela clareza visual e formal de Fernando Lanhas, confluindo num percurso e numa leitura de exposição tão dinâmicos quanto harmoniosos.
Relativamente a Lapa, duas peças fizeram parte da grande retrospetiva do artista concretizada, precisamente, há um ano atrás, pelo curador Miguel von Hafe Pérez, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. A atual mostra constitui, assim, a oportunidade de rever essas obras num outro contexto, menos impressionante e desconcertante mas mais sereno, devido ao trabalho e ao artista de que se fazem acompanhar. Gustavo Carneiro reforça a ideia de que, apesar da exposição tender a anunciar-se como uma coletiva, foi pensada e elaborada para ser entendida como uma só. Requer-se, pois, a compreensão desta mostra enquanto um corpo de trabalho que, apesar de decorrer de duas mãos distintas, conflui num conjunto que invade a sala em que se expõe. Assim, proporciona-se ao espectador uma receção tão única quanto plural e dinâmica, com várias layers de sentidos e de significados que se consolidam numa inédita experiência estética.
Nesse sentido, apesar do título L vs L parecer colocar os artistas em dicotomia, trata-se, precisamente, do inverso, da convergência e da comunhão entre ambos. Celebra-se, pois, um vínculo que se consolida através de uma exposição particularmente simbólica e valiosa para ser refletida, observada e sentida, até 3 de março.