A Flor e o Entulho
Esqueçam o sarcasmo e pensem em beleza. No contexto das residências artísticas promovidas pela ArtWorks, a expressão ‘a fina flor do entulho’ passa a ser algo mais próximo da canção de Nelson Cavaquinho, A Flor e o Espinho. Num parque industrial da Póvoa do Varzim, nascem obras de arte a partir de um solo constituído por ferro, aço e vidro.
Em 2018, na sua primeira edição, as residências artísticas No Entulho convidaram os artistas Jérémy Pajeanc, Tiago Madaleno, Rafael Yaluff, João Pedro Trindade, Igor Jesus e Francisca Carvalho, a reutilizar e transformar matérias-primas excedentes do processo fabril. À sua disposição estavam todos os meios necessários para produzir com elas obras de arte em pequena, média ou grande escala. Para que isto fosse possível, ao trabalho criativo destes artistas juntou-se o conhecimento técnico de serralheiros, eletricistas, vidreiros, engenheiros e arquitetos.
Este cruzamento disciplinar não é novo para a ArtWorks, um organismo que desde 2013 se dedica a apoiar a produção de criações artísticas de nomes como João Pedro Croft, Fernanda Fragateiro, Pedro Cabrita Reis e Álvaro Siza Vieira, entre outros, e de projetos culturais como a Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra (em regime de mecenato). Este apoio vai desde a concepção das obras aos desenhos técnicos, passando pela montagem e instalação das mesmas. “Parece-me que o ambiente fabril é o ponto de partida de muitas das peças que podemos ver hoje expostas em museus, galerias, instituições, espaços públicos, entre outros. Muitos dos artistas, para poderem concretizar determinados projetos, precisam de espaços de produção muito amplos e de apoio técnico especializado, o que leva a que recorram a arquitetos e engenheiros para conceber os desenhos, e a empresas como serralharias, carpintarias ou vidrarias, para produzirem as peças. Na ArtWorks aquilo que fazemos é congregar todas estas facetas através de uma equipa nuclear de cinco pessoas – dois arquitetos, um designer de ambientes, um fotógrafo e uma pessoa formada em história de arte e curadoria – e da equipa multidisciplinar da empresa, composta por arquitetos, engenheiros, serralheiros, programadores, eletricistas, pessoal de produção, entre muitos outros. O modus operandi é diferente de artista para artista e depende da natureza do projeto. Em alguns casos, estamos muito envolvidos na própria conceção das obras, noutros compete-nos sobretudo a produção e a logística. Aqui no meio há muitas zonas cinzentas, cada projeto tem contornos únicos”, explica José Miguel Pinto, diretor da ArtWorks.
No que diz respeito às residências No Entulho, a ideia é confrontar os artistas com a dinâmica operacional de uma fábrica, colocá-los perante processos e materiais que exigem tempos diferentes dos que estão habituados. Acima de tudo, têm que criar um diálogo contínuo com os técnicos para levar as obras a bom porto. “Há que ganhar a confiança e o interesse dos trabalhadores. No fundo, é um jogo de cumplicidades”, diz José Miguel Pinto.
No final da residência, abrem-se as portas dos ateliers para mostrar as obras finalizadas ou ainda em processo de finalização – a ArtWorks compromete-se em acompanhar logística e financeiramente os projetos até ao fim, mesmo que a sua concretização exceda o tempo de residência. Os artistas não estiveram todos a trabalhar ao mesmo tempo na fábrica e as respetivas mostras também foram faseadas. A última artista a usufruir desta experiência e a expor o seu trabalho foi Francisca Carvalho. É o seu discurso direto sobre as residências artísticas No Entulho que deixamos aqui. Antes disso, entreabrimos a porta da 2ª edição, anunciado que a ArtWorks irá expandir o espectro dos convites para além das artes plásticas. A ideia será levar para o Parque Industrial Amorim artistas ligados à literatura, à fotografia, ao cinema e ao teatro.
Francisca Carvalho
Tendo em conta que o teu trabalho se centra no papel, o que te trouxe de novo o contacto direto com este tipo de matérias, o chamado “entulho”, e também com o pessoal técnico especializado que esteve à tua disposição durante a residência?
Desde há dois anos, tenho vindo a colaborar com fábricas. Esse interesse começou com os tecidos, o mundo têxtil levou-me a essa procura. Em 2018, estive a aprender a trabalhar com tintas naturais numa pequena fábrica situada na aldeia de Bagru, perto de Jaipur (Índia). Pouco antes de saber que ia para a Índia recebi um convite do José Miguel Pinto e da Ana Brito para trabalhar na residência artística No Entulho. Quando estive em Baltimore, durante o mestrado na MICA (Maryland Institute College of Art) trabalhei bastante na carpintaria da escola e na secção de fibras têxteis. Aí aprendi um tipo de manualidade que era novo para mim.
O papel tem sido o centro do meu trabalho e tem-me permitido expandir a linguagem incorporando outros materiais. A fábrica impõe um tipo de escala (a vários níveis) muito diferente da escala íntima, secretista do atelier. E isso transforma a relação que tenho com o trabalho. A escala do atelier implica o domínio de uma manualidade espontânea e manuseamento sempre improvisado, leve por causa dos materiais que estão ali para ser usados e leve porque estou sozinha. A escala da fábrica implica um manuseamento que é já uma relação entre a mão humana e a máquina e as máquinas são avessas ao improviso. Por isso, a lógica tem que mudar. Tem que se pensar, à partida, no que se vai fazer, tem que se programar e projetar. Na fábrica, o espaço de trabalho é sempre partilhado, é preciso entrar no ritmo da oficina, não o perturbando. Esse ritmo já lá está antes de mim. O improviso vem sempre depois, no meu caso, quando consigo estabilizar a minha relação com o ambiente: pessoas, máquinas e ruído. É preciso fazer uma ressalva. O termo máquinas refere-se não só aos mecanismos computadorizados, mas também ao ritmo de trabalho que é mais ou menos maquinal. Estar na fábrica é como entrar atrasado na música improvisada, os músicos já lá estão, o ritmo está lançado e é sempre maior do que eu. Eu entro e acerto-me, entro em sintonia paralela com esse grande corpo.
Trabalhar na fábrica permite o acesso a materiais e processos novos para mim, instala uma dinâmica nova que acontece quando as pessoas que lá trabalham abrem espaço e quando eu abro espaço. Há aquela indiferença atenta com picos de curiosidade que eu associo à dinâmica familiar, por isso, sim, é como entrar numa família. Isso é um processo de sedução, de curiosidade e envolvimento com o que as pessoas estão a fazer isto tudo tentando perturbar ao mínimo. As fábricas são focos de repetição e atenção à tarefa.
Quando cheguei à Ecosteel fui acolhida pela equipa da ArtWorks que me mostrou os departamentos da fábrica – quinagem, serralharia, vidros e entulho. Apresentaram-me aos trabalhadores. Ao princípio, foi intimidante por causa da escala e peso dos materiais, então fechei-me num pequeno estúdio que eles lá têm e fotografei o entulho e tudo o que via. Das fotografias, tesoura, cola, fitas colas várias e espumas fiz pequenas maquetes, porque isso ajuda a pensar, a ver nascer uma coisa à tua frente, por muito provisória que seja. Sentir uma espécie de empowerment que vem das mãos ajuda a combater aquilo que intimida. Depois do susto inicial e dos esboços de pequena escala estabilizei-me no ambiente e atirei-me aos vidros postos em cavaletes na serralharia. Quando comecei a trabalhar nos vidros tudo mudou, por estar a trabalhar muito exposta ao ambiente envolvente e às pessoas que ali trabalham. Precisei sempre da ajuda do André, do Sr. Domingos e muitos trabalhadores da parte do vidro para me virarem os vidros com as ventosas e as cintas. Estou-lhes mesmo muito grata, não só por me terem mostrado que a colaboração genuína é possível, como por me terem feito sentir que eu fazia parte da comunidade de trabalhadores.
Como descreves o trabalho desenvolvido durante a residência e de que forma o enquadras no teu percurso? É uma continuação, uma quebra ou exceção ditada por um contexto específico, um novo passo? Ou nenhuma das anteriores?
É tudo isso ao mesmo tempo. À partida, começou por ser uma exceção ditada por um convite, depois tornou-se uma continuação do meu trabalho no tipo de soluções de composição e, finalmente, com um mês de distanciamento, percebo que foi um novo passo. Eu sabia que na Ecosteel se trabalha com vidro e metal. Era o que eu sabia. Vidro e metal são matérias frias e criam ambientes autoritários, é preciso dar a volta com outros materiais para torná-los quentes. Fui sem nenhum projeto pré-definido. Faz parte do meu modo de operar ir em aberto, porque sei que não sei e quero descobrir. Aí é que as ideias nascem, porque os olhos e os sentidos estão alerta como sempre acontece quando nos pomos em território desconhecido.
Comecei a pintar os vidros gigantes que estavam no entulho usando as duas frentes. O tamanho e natureza dos vidros impôs um tipo de composição, um leque de cores muito específico. O vidro já é um campo pictórico muito vibrante, porque reflete e filtra a luz, está sempre a mudar. Uma mancha num vidro é sempre uma paragem, interrompe essa vibração. A relação entre as duas faces do vidro não é tanto a de contraponto, é mais a de complementaridade assimétrica. A frente faz parte do verso e vice-versa e no fim não há frente nem verso, ou melhor, quem a dita é a posição do teu corpo em relação às faces e a pintura vai mudando à medida do teu percurso no espaço. Há situações de falsas sombras e outras de sombras verdadeiras que se fazem passar por tinta. As formas tinham que ser simplificadas para poderem comunicar entre si e dos dois lados. Os desenhos Tantra Indianos apareceram à minha frente como um caminho, neles as formas geométricas são entidades. Não são assinaturas. Há qualquer coisa de muito apaziguador nas formas geométricas que são sempre sem autoria. Elas abrem-se à apropriação, ao uso, mas estão-nos sempre a escapar como se dissessem que este plano em que vivemos não começa nem acaba em nós.
O que levas contigo desta residência?
As relações afectivas. A energia do trabalho. As colaborações genuínas terem acontecido.