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Escavar um Buraco

Um projeto para uma exposição-instalação de Paulo Mendes

Campanhã é onde inaugura a mais recente exposição de Paulo Mendes, no Espaço Mira, e é, simultaneamente, o objeto da fotografia, do vídeo, do estudo e da investigação do artista.

A representação em filme dessa zona da cidade do Porto abre e fecha a instalação que se apresenta na galeria, através dos dois painéis de projeção que delimitam a área em que toda a obra se expõe. No seu verso, direcionados para o centro da sala, encontram-se mais registos, uns curtos e intimistas, outros de planos fixos mais longos, todos eles documentando lugares e estruturas urbanas, também de outras zonas da cidade. Numa mudança contínua, a um ritmo constante mas não coordenados entre si, surgem, de um lado, somente fotografias, e do outro, breves vídeos. As projeções imagéticas são acompanhadas por mais um elemento, o som, correspondente às várias gravações que se expõem. Este acrescento surge em décalage, num desfasamento que, ao invés de quebrar e afastar as peças, aproxima-as umas das outras, funcionando como um elo de ligação em toda a obra. Trata-se, pois, de mais do que uma exposição de vários trabalhos de um autor, funcionando como conjunto, um todo que invade e transforma a galeria. A adição das imagens num mesmo espaço e momento sugere contrastes, relações, diferentes dinâmicas e leituras plurais, em constante desenvolvimento e percurso.

No que diz respeito ao conteúdo da obra, os registos visuais de Paulo Mendes apresentam-se de um modo claro, verdadeiro, cru, através de uma enorme simplicidade formal e estética e de uma aproximação ao real, sem artifícios ou camuflagens no sentido de uma fabricação do belo. O objetivo do artista é, precisamente, o de retratar e mostrar o que captura, com uma correspondência científica ao real, com um certo caráter arqueológico de investigação e rigor que lhe são próprios. Através de planos criteriosamente definidos para revelarem fielmente os espaços, vêem-se ruínas, descampados e zonas industriais aos quais são sobrepostos protagonistas, residentes de várias zonas da cidade do Porto.

No primeiro vídeo, Escavar um buraco (2018), e no último, Capri (2009), em dois cenários distintos de Campanhã percebem-se as alterações urbanísticas e sociais que estão a ocorrer na cidade. Assiste-se, também, à transição do dia para a noite, ciclo reflete um dos interesses do artista, ou seja, a dinâmica espaço/tempo, elementos de relação contínua que unem o que aqui se expõe. Trata-se do tempo da obra e do que lá se encontra representado, do passado e do presente e, ainda, da relação ao público, do tempo da receção e da experiência.

O trabalho é apresentado numa construção espacial que convida o espectador a entrar, a deslocar-se para o centro da sala, ponto central de observação da instalação, colocando-o numa situação de duplo confronto, de dupla receção que se conjuga num momento de ampla e densa experiência. A sombra do espectador é projetada nas imagens, perfura-as, quebra-as e interceta-as, assim se estabelecendo uma situação de certo modo participativa e mutável, dependente do ambiente em que imergem. É, pois, uma obra sensível e suscetível, algo que pode, inclusivamente, ser interpretado como um reflexo da própria fragilidade dos objetos e dos sujeitos que dela fazem parte. A galeria, invadida e envolvida por uma luz verde, insurge-se como um “lugar suspenso na realidade”, expressão que utiliza o jovem curador João Terras. Na verdade, a cor reporta-se à relva, ao exterior e à paisagem que, deste modo, entram na galeria, a contaminam e transformam, bem como às imagens projetadas. Unem-se, assim, os vários registos e suportes técnicos.

Sendo Paulo Mendes, ele mesmo, comissário e crítico e tendo, nesta ocasião, entregue a curadoria da sua obra às mãos do dotado José Maia e de João Terras, o que se revela ao público, desde o dia 19 de janeiro, é de uma qualidade e complexidade notórias. Assim se descreve, na verdade, a grande maioria do trabalho do artista, cujas criações e produções curatoriais tendem a ir para além do expectável, do comum e destacam-se por serem inequivocamente singulares. O título anunciado, Escavar um buraco, projeto para uma exposição-instalação, decorre de uma ideia inicial do autor, quando começara a conceber a presente mostra, à qual corresponde a planta e instruções técnicas atualmente projetadas no final da sala, ilustrativa desta ala do Espaço Mira e da maqueta que nela se irá apresentar no último dia da exposição, 16 de fevereiro. Esse outro instante, projeto ambicioso e muito singular, bem distinto do atual, proporcionará uma outra renovada receção estética, o que requer dupla visita à galeria. Por enquanto, mostra-se o processo, tal como o nome da exposição indica.

 

Esta exposição celebra, assim, Campanhã, o Porto, o portuense, e comemora, também, o Espaço Mira que, há pouco mais de cinco anos, inaugurava a sua segunda exposição, a primeira a ser comissariada por José Maia, O vasto Espaço da Realidade. Dessa coletiva, em 2013, fez parte, precisamente, Paulo Mendes, com Capri (2009), vídeo que, hoje, faz o retorno a esse instante tão marcante para a galeria e para ambos os curadores.

Atualmente, ainda se mantêm várias características desta zona pós-industrial, em tempos esquecida, mas que, recentemente, tem sido objeto de algum revivalismo, nomeadamente através de ações artísticas e culturais. Nesse mesmo âmbito, e porque a obra o merece, a visita à exposição é importante, momento que, simultaneamente, recorda e se imprime enquanto nova memória para quem a contempla.

 

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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