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Corpo Fechado de Carlos Motta – uma revisitação da narrativa histórica

Num passeio pela zona de Belém, vale a pena fazer uma visita à Galeria Avenida da Índia, onde é possível observar, até meados de fevereiro, as obras recentes do artista multidisciplinar Carlos Motta (n.1978), colombiano, residente em Nova Iorque.

Sob a curadoria de Pedro Faro e Sara Antónia Matos, a exposição Corpo Fechado foi preparada pelo autor ao longo de dois anos, tendo implicado uma extensa investigação de documentos, fontes, arquivos e instituições, na qual é visível, inclusive, a pluralidade de ferramentas e meios utilizados pelo artista: fotografia, filmes/vídeo e objetos escultóricos reformular alguns dos temas ligados à época dos Descobrimentos, ao Império Português bem como ao período da Inquisição.

A peça central da exposição é o filme The Devil’s Work, um poema fílmico, que conta a história de José Francisco Pereira, um escravo de Judá, julgado pela Inquisição de Lisboa por feitiçaria e sodomia, interpretado pelo ator angolano Paulo Pascoal.

Um conjunto de peças giram em torno do filme, como as duas assemblages ready-made Sincretismo, numa montagem emoldurada de dois adereços do filme: um azorrague de corda e um desenho em papel figurando três cruzes; bem como a composição icónica de dois fotogramas, um deles, colocado no interior da sala Um Portal Estreito através do qual Deus pode entrar e o outro A Obra do Diabo no espaço exterior da galeria, funcionando como um mural.

Francisco Pereira surge amparado pelo monge diante de uma cruz, emulando a representação religiosa canónica da Pietá. Ambas ilustram interações íntimas entre as personagens dos filmes o Monge e José Francisco Pereira. A primeira imagem foi selecionada por ser uma síntese reveladora da mostra, na aproximação entre o escravo e o monge, numa relação sedutora através de um ato íntimo profundamente erótico. Esse encontro é apenas sugerido, talvez por isso a imagem icónica seja tão forte.

Dar visibilidade à existência de comunidades que não tiveram voz.

As peças expostas são construídas numa vertente concetual, numa lógica de um discurso histórico, onde prevalece o conteúdo temático. Contudo, estas peças são essenciais para consubstanciar a sua linha de pensamento assente na história da filosofia. O artista tem vindo a estudar ao longo dos últimos anos, debruçando-se sobre as histórias homoeróticas pré-hispânicas e coloniais. Deste estudo, resultou em 2013 a obra Nefandus, composta por uma Trilogia, que esteve exposta na Filomena Soares.

Os filmes procuram documentar a imposição pela força e exploram a posição das categorias epistemológicas europeias sobre as populações indígenas, as culturas nativas durante a conquista portuguesa e espanhola das Américas. Neste contexto, um dos núcleos temáticos mais expressivos e elucidativos é Lisboa e os Descobrimentos, no qual constam um díptico e tríptico fotográfico.

Esta série é acompanhada de dois objetos históricos: um tabuleiro de xadrez e uma Esfera Armilar. Esta última situa-se à entrada da exposição, ligeiramente reclinada, como se tivesse a tombar, e dada a sua grandiosidade em volume, impõe-se no espaço que ocupa, desempenhando o papel duma escultura de chão. Trata-se de uma peça potente, em ferro, que consiste numa estrutura esférica de anéis, um instrumento de astronomia aplicado à navegação, centrada na Terra ou no Sol, sendo um modelo reduzido do cosmos, utilizado como representação do Universo. Este objeto escultórico é um exemplar de 46 que veio do Museu de Lisboa, o qual constituiu um elemento decorativo da fachada do Cinema-Teatro Monumental, no Saldanha. Em Portugal, a esfera armilar tornou-se num símbolo manuelino de poder político e económico ligado às navegações.

Surge uma outra escultura, Exú, formada por uma estatueta-souvenir em metal envolvida de uma corda náutica, remete para as naus portuguesas que faziam a viagem para o Brasil na época dos Descobrimentos.

Este espaço galerístico tem-se dedicado a artistas nacionais e internacionais contemporâneos preocupados com a temática colonial no sentido de projetar novos olhares face à interpretação presente, criando discursos alternativos numa revisitação da narrativa da história. Indo ao encontro do programa da galeria, os trabalhos de Corpo Fechado, de Carlos Motta, desafiam precisamente estes conceitos, ao deterem um olhar singular e interrogativo acerca da leitura e interpretação de certos parâmetros filosóficos, períodos específicos na área da história.

Manuela Synek é colaboradora da revista Umbigo há mais de dez anos. À medida que os anos vão passando, identifica-se cada vez mais com este projeto consistente, em constante mudança, inovador, arrojado e coerente na sua linha editorial. É Historiadora e Crítica de Arte. Diplomada pelo Instituto Superior de Carreiras Artísticas de Paris em Crítica de Arte e Estética. Licenciada em Estética pela Universidade de Paris I - Panthéon – Sorbonne. Possui o "Curso de Pós-Graduação em História da Arte, vertente Arte Contemporânea", pela Universidade Nova de Lisboa. É autora de livros sobre autores na área das Artes Plásticas. Tem participado em Colóquios como Conferencista ligados ao Património Artístico; Pintura; Escultura e Desenho em Universidades; Escolas Superiores e Autarquias. Ultimamente especializou-se na temática da Arte Pública e Espaço Urbano, com a análise dos trabalhos artísticos onde tem feito Comunicações. Escreve para a revista Umbigo sobre a obra de artistas na área das artes visuais que figuram no campo expositivo fazendo também a divulgação de valores emergentes portugueses com novos suportes desde a instalação, à fotografia e ao vídeo, onde o corpo surge nas suas variadas vertentes, levantando questões pertinentes.

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