A incomensurabilidade de Purple
Um longo corredor, púrpura sombrio, conduz-nos a uma sala ampla de paredes, pavimento e teto pintados no mesmo tom. A sala preenche-se com o som de água corrente, enquanto seis ecrãs de grandes dimensões se iluminam, projetando a mesma imersiva tonalidade. Purple, o trabalho do artista e cineasta britânico John Akomfrah, atualmente em exposição no Museu Berardo, começa assim, de forma silenciosa e dramática.
Os seis ecrãs são animados por imagem em movimento: o riacho cujo som já conhecemos; uma imponente paisagem montanhosa; figuras solitárias encarapuçadas; imagens a preto e branco de gravidez e nascimento. Alguns ecrãs proporcionam diferentes perspetivas da mesma cena, outros mostram algo totalmente díspar. Fragmentos de cada cena são cortados em diferentes momentos, enquanto uns se demoram, outros mudam rapidamente para uma cena distinta, criando um mosaico vivo de imagens em movimento. Uma paisagem sonora orquestra todo o panorama, direcionando a nossa atenção de ecrã em ecrã ao criar uma textura polifónica composta por reportagens de arquivo, excertos líricos, partituras sinfónicas, cantares vernaculares e sons naturais – enquanto isso, o riacho continua a correr.
Ao conjugar material de arquivo dos anos 50 e 60, que envolveu a examinação de centenas de horas de filme, com cenas originais, gravadas em dez países ao longo de três anos, é seguro dizer que esta instalação de seis canais e uma hora de duração constitui o projeto mais ambicioso de Akomfrah até à data. O artista contextualiza esta obra como a segunda peça de uma série maior que tem por base o conceito de hiperobjeto – termo cunhado pelo filósofo Tim Morton para descrever entidades que se expandem em dimensões espaciais e temporais tão vastas, que escapam formas convencionais de entendimento, controlo ou confronto. O primeiro trabalho desta série, Vertigo Sea, focou-se no que consiste, segundo o artista, “o mais primitivo dos hiperobjetos”, o mar. Apresentado na Bienal de Veneza de 2015, Vertigo Sea abordou o seu objeto de estudo enquanto elemento de grande esplendor e tormento, explorando o seu papel na história da migração e da violência, do tráfico de escravos à atual crise de refugiados, da prática da caça à baleia à destruição ambiental. É aqui que Purple entra em cena.
Purple aborda a ubíqua e contundente realidade que veio caracterizar o Antropoceno, hoje amplamente discutido como a era onde a atividade humana passou de um mero agente biológico de impacto local para algo com proporções geológicas, capaz de interferir drasticamente no sistema climático global. Inspirado em noções que gravitam em torno da ontologia centrada no objeto – como os hiperobjetos de Morton, os actantes de Bruno Latour ou os materiais vitais de Jane Bennett –, Akomfrah dedica especial atenção às forças elementares e não subjetivas que assumem papeis centrais no contexto global. Artistas e filósofos têm frequentemente encontrado formas de abordar o Antropoceno que tornam o fenómeno mais palpável do que quando este é exposto por ciências exatas, já que a sua complexidade e premência parecem desafiar a razão.
A ambição e multiplicidade de Purple encontra-se então assente na incomensurabilidade do tema que apresenta. Canalizando a complexa situação global para o espaço da galeria, o artista faz com que seja impossível apreender a totalidade da sua obra. Cada perspetiva é invariavelmente fracionária. Enquanto peça expositiva, Purple é uma experiência coletiva, partilhada entre espetadores. Contudo, cada espetador nunca verá exatamente a mesma sequência que outro, exatamente o mesmo filme. O artista rejeita a supremacia de uma narrativa unidimensional, encorajando diferentes leituras das violentas justaposições que propõe; possibilitando diferentes “relações de isolamento” no trabalho; e demonstrando o nosso estado de apatia e impotência perante esta realidade partilhada.
Contraste, aposição e simultaneidade são fundamentais na execução de Purple. Não apenas por colapsarem o contínuo espaço-tempo e aproximarem culturas distantes, mas também pelo unirem curtas narrativas biográficas, reais e imaginárias, com a imensa e impessoal esfera climática. Esta composição barroca não possui guião, mas não deixa de ter uma lógica interna. Uma crónica subjacente do nascimento à morte desmultiplica-se em cinco movimentos progressivos que são pontuados por contrapontos rítmicos: sistemas climáticos quentes e frios; corpos ativos e figuras contemplativas; máquinas frenéticas e paisagens latentes.
Apesar de ser certamente defensável sublinhar o nosso glorioso caminho rumo à auto-extinção, questiono-me se a linearidade é de todo produtiva neste trabalho… Será necessário criar uma sucessão de movimentos em declinação para discutir a indeterminação do hiperobjeto ou a entropia do Antropoceno? Talvez esta narrativa linear exista apenas para ser interrompida e baralhada, mas pode tornar-se um pouco didática. O trabalho mostra-se mais desarmante nos momentos em que a colagem de cenas é mais oblíqua, complexa e contrastante – tão intrigante quanto o hiperobjeto em si.
Por outro lado, o contraste de andamento entre a automação de acontecimentos e a inércia do ato de testemunhar torna-se bastante sugestivo. Um dos aspetos mais intrigantes do filme é a constante presença de pessoas a dançar. Quando questionado sobre o assunto, o artista explica que procurava material que dissesse algo sobre esta era, e que viu na dança “um índice de socialidade, uma metáfora essencial para ser humano.” Os vários fragmentos de cenas com pessoas a dançar e a cantar, desde danças de salão a coreografias disco, de concertos rock a temas folclóricos, revelam de forma tocante o nosso estado de letargia, ao nos deixamos entreter perante uma calamidade auto-produzida. É possível estabelecer um paralelo antagónico com um quadro de vanitas, vendo estas cenas como uma prequela de uma natureza morta, revelando a vitalidade humana enquanto apontam para a inevitabilidade do nosso desaparecimento.
A exploração destas dicotomias associa Purple à restante obra de Akomfrah. A “proximidade afetiva” destas cenas sublinha uma convicção que tem motivado grande parte de seu trabalho – em particular, a investigação obsessiva por imagens de arquivo –, a certeza de que uma imagem ou memória esquecida pode ser profundamente reveladora no futuro. Um pós-estruturalista convicto, Akomfrah exerce repetidamente o seu ímpeto de ler a contrapelo:
“Parte daquilo que justifica a utilização de material de arquivo prende-se com a oportunidade de voltar à cena do crime, por assim dizer. Lá, o vilão nunca se esconde. O regresso força uma confissão. Permite que vejamos novamente, de forma diferente. Por vezes, o material de arquivo parece saber de antemão o seu próprio assunto, noutras parece ser um espelho para algo que ele mesmo não consegue deslindar.”
O artista também se refere a Purple como um dos seus projetos mais autobiográficos. Tendo crescido na zona oeste de Londres, próximo à Central Elétrica de Battersea, Akomfrah foi desde sempre exposto às suas emissões nocivas – algo que nunca foi questionado ou sequer mencionado. O artista explica que este trabalho tem que ver com voltar àquele momento e revelar o que não foi dito. Curiosamente, as ramificações destes laços autobiográficos permitem também tecer alguns dos assuntos recorrentes no repertório de Akomfrah, relacionados com temas de história social e questões de identidade, classe e raça. São vários os momentos do filme que interconectam injustiças sociais e ambientais, apontando para como minorias mais desprivilegiadas são geralmente aquelas que mais sofrem com o impacto da crise ambiental, mesmo quando as consequências não eram ainda compreendidas ou reconhecidas. Contudo, Akomfrah mostra-se inflexível na opinião de que a violência destas forças atingirá todas as camadas da sociedade. Tal como a sua estratégia de “proximidade afetiva” tende a mostrar: “A narrativa do século XX poderá assemelhar-se a uma espécie de bizarro jogo, que parece ter vencedores e vencidos. Mas, na verdade, todos somos perdedores, sempre.”
Por fim, o título do trabalho continua a ser algo vago. A omnipresença da cor púrpura, assim como as paisagens industriais marcadamente filtradas que pululam neste filme, mostram o forte apelo que o artista sente pela cor. Akomfrah mostra-se particularmente interessado na sua indeterminação, posicionada entre dois sistemas de coloração, azul e vermelho. A liminaridade deste tom pode também ser observada do ponto de vista da física da luz e da cor. No limite superior do espetro visível, a cor violeta atua na fronteira entre o que podemos apreender e o que escapa à nossa visão – e que, à semelhança das forças naturais que o filme retrata, carece de subjetividade, mas detêm grande impacto. E, sim, de acordo com o artista, Purple é também uma homenagem a Prince e ao seu entendimento criativo da cor como algo associado ao poder, mas também ao arrependimento e ao luto. Fazendo ecoar um lamento coletivo de desespero, Purple conduz-nos por uma viagem complexa através da ambiguidade e do absurdo da nossa era.
Purple está patente no Museu Berardo, em Lisboa, até 10 de março.