Um poema a adivinhar nos Picos e Lombos, de Rui Pinheiro
Por Maria Fernandes
Através de que olhar se vê uma nova realidade geográfica e o que buscam os olhos no circundante recém apreendido, quando um sem fim de odores e sons invade os sentidos do forasteiro na freguesia dos Prazeres, na Ilha da Madeira? Esta era a questão que me assaltava à medida que seguia a caminho da Galeria dos Prazeres para ver Picos e Lombos, exposição de fotografia de Rui Pinheiro, que teve o primeiro contacto real com a ilha na freguesia serrana do concelho da Calheta.
A imagem do cartaz da exposição, mostra um colchão atado a um pinheiro (aqui, a subtileza da ligação com o sobrenome do fotógrafo) no meio da floresta (local que se descobre depois ser uma pista de motocross e aquela uma das proteções contra pescoços torcidos e colunas partidas), faz adivinhar a ironia e um certo olhar mordaz e provocador embutido no conjunto imagético que me esperava. Mas, a adivinhação viu-se diluída ao entrar na sala seguinte, onde o conjunto fotográfico se faz acompanhar pela sonoridade de água corrente (composição de João Ricardo) e que acompanha a projeção da mesma no soalho do espaço. É então possível estender o olhar pelas imagens circundantes e ao mesmo tempo caminhar ao longo da água, que entendo elemento aglutinador e fio de ligação, não só das imagens que me são familiares e cuja reinterpretação de Rui Pinheiro vou agora aprender, mas também da freguesia dos Prazeres, lugar aquoso por excelência.
A narrativa visual que se apresenta, repartida por vários capítulos que oscilam entre o registo do lugar, diálogos cromáticos e de forma, e a marca indelével de quem entende o espaço circundante como base criativa, pode ser entendida como um roteiro de sensações e perguntas do autor.
Tomando como exemplo a já referida imagem inicial do cartaz, pode ainda sentir-se isto no lenço à cabeça da mulher de costas, que por ser colorido, faz adivinhar mulher solteira, talvez jovem, apesar de se não lhe ver o rosto; em quem segura a mangueira que rega (será de lá que surge o som aquoso?); nas maravilhas que crescem na base de um cano de escoamento. Quem regará tamanho leque de cor? Que forma tem o tronco das pernas que que saem de trás de uma parede e se bronzeiam num terraço?
Para além do registo do lugar e implícitos os diferentes aspetos caraterísticos da zona – temas como a emigração, a desertificação, patente por exemplo na imagem da trombeteira (Brugmansia suaveolens), o impacto da ação humana no espaço rural da freguesia, seja a nível de grandes infraestruturas, como as recentes acessibilidades ou em termos domésticos, como a nível do impacto da arquitetura vernacular, em contraponto com a tradicional, seja em termos visuais, seja em termos identitários – importa ressalvar que é possível sentir a identidade dos Prazeres nos Picos e Lombos de Rui Pinheiro.
No diálogo dos palheiros, que já foram habitações, para além da evidente evocação da principal atividade de uma freguesia rural, a agricultura, e na esgrima tanto espiritual como ornamental de telhados e seus remates, a evocação das imagens captadas por Victor Mestre no levantamento para o livro Arquitectura Popular da Madeira. Enquanto aquelas são um registo importante no seu contexto, mas que se limita a si mesmo na sua finalidade, a visão de Rui Pinheiro, além de nos mostrar o que já sabemos existir, remete-nos para um mundo de ironias, subtilezas e contrapontos que conduzem o interlocutor num diálogo interno de perguntas a que se vão adivinhando respostas, a partir das pista deixadas nas imagens.
Mais que isto, com todo o seu valor simbólico e documental, contributo importante para a identidade coletiva local, é reflexão de quem interpreta o lugar através do olhar – seja “na distância com que [a partir dos Prazeres] se vê o mar, na distância com que se vê a montanha”, ou na estranheza que se nos causa por dentro, verificar a forma como outros veem o que nós, cada um, na sua experiência, reconhece como familiar. A este propósito, relembro Marcel Proust na sua obra Em Busca do Tempo Perdido: “Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam permanecido para nós tão desconhecidas como as que poderiam existir na Lua.” Este rochedo atlântico tem paisagens tão diversas que cada uma delas poderia ser lunar ou mesmo conter uma lua em si, um mundo em si, uma nova história em si, um novo poema em si, como os que se entreveem no olhar do Rui Pinheiro (que terá visto um pinheiro protegido por um colchão?). E conclui-se, citando o mesmo autor: “Graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver, mais mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros que os que existem no infinito”.