Al Cartio e Constance Ruth Howes de A a C
Há inúmeros casos de exposições em que os curadores são determinantes na criação desse momento, podendo até serem consideradas exposições de curador, tal é a intervenção que têm, seja pela escolha ou por a exposição ser um convite do próprio curador ao artista.
Al Cartio e Constance Ruth Howes de A a C resulta de um convite do Museu Calouste Gulbenkian a Ana Jotta e Ricardo Valentim, para exporem como dupla no Espaço Projecto. A resposta a este convite foi a proposta de curadoria para um conjunto de obras de Al Cartio e Constance Ruth Howes. Poderíamos, então, considerar que esta exposição resulta num duplo diálogo de artistas: Al e Constance, como resultado do diálogo entre Ana e Ricardo. Só que estes artistas que assinam as obras levantam suspeitas, não fosse a obscuridade dos seus percursos.
As obras atribuídas a Constance são pequenas aguarelas edílicas de paisagens rochosas e luminosas. As obras atribuídas a Al Cartio são mosaicos inscritos com palavras que se relacionam através de uma letra ou de um tema e jogos tipográficos entre elas.
Os trabalhos de Al Cartio e de Constance Ruth Howes são completamente díspares. E, assim, o percurso expositivo torna-se um diálogo entre artistas, usando as supostas obras de dois outros, desconhecidos, ainda por cima. Cabe ao visitante acreditar que estes artistas americanos existem mesmo e não são um produto de Ana Jotta e Ricardo Valentim. Há duas obras que fogem ao dispositivo criado: uma escultura de Al Cartio, Exit C. e uma aguarela (a única obra emoldurada) de João Marques que terá sido adquirida por Constance durante a sua estadia no Algarve. São também as únicas obras presentes cuja proveniência está assinalada, o que contribui para que o visitante possa duvidar destas peças como sendo de Al Cartio e Constance Ruth Howes, a par de outras pistas que podemos encontrar dentro ou fora do Espaço Projecto, incluindo na própria imagem que acompanha o texto de apresentação no site da Gulbenkian.
A História da Arte está pejada de criações de alter egos, heterónimos e até, muitas vezes por motivos políticos ou outros, de ausência de atribuição de autoria (muitas delas foram descobertas posteriormente). Aqui há toda uma criação de persona com direito a assinatura e biografia que ultrapassa o mero heterónimo. Al Cartio e Constance Ruth Howes (que uma breve pesquisa na internet revela que nasceu em Londres em 1888 e morreu em 1970) servem o propósito dos artistas-curadores de lançar a discussão sempre pertinente (cada vez mais) acerca da autoria artística e do trabalho de um curador de arte.
A questão autoral é tão antiga como a História da Arte. Até ao século XX era muito comum os artistas terem ateliers ou oficinas onde os seus aprendizes ajudavam a produzir as obras que os mestres pensavam. Muitas vezes, esta linha entre um mestre que pensava a obra e um aprendiz que a produzia desvanecia-se e temos hoje obras-primas que sabemos não terem sido feitas nem pensadas pelo artista cuja assinatura figura na obra. Neste caso, Ana Jotta e Ricardo Valentim parecem preferir que esse debate se faça sob o tópico da curadoria. Voltando ao início deste texto: será o curador, hoje em dia, um autor? Um artista? Muitas vezes os museus convidam os curadores a criarem projetos para determinados espaços, dando-lhes assim o poder de decidir quais os artistas a convidar e até a estabelecer um tema prévio que serve de mote a esses artistas. Neste caso, o Museu Gulbenkian convidou os próprios artistas, que optaram por, criando dois tipos de obras (não sabemos como foi feita a divisão, mas podemos adivinhar) que atribuíram a Al Cartio e a Constance Ruth Howes, gerar com muito humor e inteligência, todo um enredo digno de um detetive.
Não é um embuste, é antes um convite à reflexão.