Kader Attia, As raízes também se criam no betão
Por mais libertário e libertador que se seja, há sempre um coeficiente – mínimo que seja – que cola o corpo e as políticas do corpo ao Estado. Porque, como Coetzee bem recorda, ninguém nasce fora de um Estado e o primeiro gesto no ar depois do útero materno já acarreta um compromisso perante uma máquina social, cultural e económica. O corpo faz parte de um sistema educativo, de saúde e económico-financeiro que nos ultrapassa e nos prende a um coletivo. Quer queiramos, quer não, é este o drama que se aceita de bom grado ao se viver em sociedade.
Dito isto, até que ponto é que o corpo pertence realmente a um indivíduo?
Depois das lutas de género, das feministas aos LGBTI+, as políticas do corpo adensam as retóricas do pensamento político, sobretudo quando expostas a temas tangenciais como a colonialidade, a pós-colonialidade e a transexualidade que, embora antiga, tem vindo a ser recolocada em cima das mesas de discussão depois de apelos à comparticipação estatal de cirurgias para a mudança de sexo.
E se os Estados representam sistemas mais ou menos abstratos, inomináveis e inidentificáveis, o certo é que eles operam em lugares concretos, cidades, regiões, países plenos de limites geográficos, morfologicamente concretos. Uma pátria – ou mátria – onde cabem várias pátrias – nações globais que atraem fluxos de outros países e continentes, para em si se instalarem e tecerem uma rede de corpos que, nascidos de acordo com outros sistemas e códigos, se submetem a um Estado que não está preparado para a diversidade, pois fora construído durante décadas e séculos de acordo com uma cultura dominante e dominadora: a Europa das monoculturas.
Kader Attia é um artista francês de origem argelina cuja obra explana as grandes questões e complexidades da contemporaneidade: a emigração, as grandes metrópoles, a aculturação, os discursos pós-coloniais, a posição do outro e a insistente recusa de um nós, e o caso mais preciso da guerra entre a França e a Argélia que obrigou a expatriações e conflitos bélicos e diplomáticos sérios. A sua exposição, As raízes também se criam no betão, é um hino à diversidade e à superação dos conflitos trazidos por estes temas, mesmo que as obras, contudo, deixem um travo agridoce, de uma realidade oscilante entre a melancolia dos grandes e disfuncionais subúrbios metropolitanos franceses e a incompreensível vontade de viver e continuar.
Acresce ainda a necessária ousadia do artista em retificar, corrigir e curar o olhar europeu, sem qualquer pretensiosismo e preferindo a interrogação à afirmação, a proposição à obrigação. A matéria é identificável, os casos são reais, a especulação apenas a estritamente necessária ao exercício livre da profissão artística. Ao juntar imagens do modernismo europeu e do Estilo Internacional a imagens da arquitetura vernacular do Norte de África, Attia sugere uma proximidade que foi esquecida ou obliterada dos manuais de história e teoria da arquitetura.
Neste contexto, os corpos não são abstratos, como também não o são os edifícios e as cidades representadas. As traves e barrotes de madeira na entrada da exposição foram retirados, guardados, conservados e recuperados de casas berlinenses que assistiram passivamente, mas com muita atenção, aos grandes acontecimentos do século XX. As brechas são agrafadas sem nada esconder. As cicatrizes são o testemunho de uma vida de um corpo arquitetónico também ele sofredor. Depois da guerra, a paz possível; depois da destruição, a reconstrução de acordo com as memórias – as individuais e as coletivas.
De facto, as suturas e as coseduras são recorrentes nas obras. Depois dos barrotes de madeira, totens da reconstrução, a tentativa de reparação é ainda visível numa cadeira preta e austera e na fotografia de uma estatueta ou busto que viu o seu rosto cortado. Cosem-se os corpos, os objetos, mas também um certo espírito neles encerrados. Cosem-se culturas como desiderato de uma diversidade plena e pacífica.
A trágica e chocante história de Théo Luhaka – jovem agredido e violado com um bastão da polícia por um agente de segurança em 2017 –, debatida no vídeo Les héritages du corps: le corps postcolonial [As heranças do corpo: o corpo pós-colonial], é um regresso aos primeiros parágrafos deste texto e às políticas do corpo. Procura-se aqui, todavia, entender – perceber os motivos e os contextos que conduziram a este fático desfecho, para, depois, emendar. Se parece uma pedrada no charco, este vídeo é, na verdade, um processo crítico necessário à cura. Interroga-se, então: o Estado ocidental, tornado corpo, tornado carne, encarnado, adquire que corpo? Que fisionomia, que raça, que etnia? Caucasiana. Um dos entrevistados menciona o poder que o corpo colonial tem sobre o corpo negro. A palavra a reter é poder, dominação. A história colonial é uma história de dominação. Dito isto, perante hediondo, mas alegado crime, retoma-se a questão – o corpo de Théo Luhaka pertence-lhe realmente? Mesmo que com nacionalidade europeia (o que quer que estas duas palavras signifiquem), a herança do corpo pesa sempre no compromisso com um Estado que se tarda em descolonizar, que olha o conjunto periférico das metrópoles com suspeita, colocando em suspensão a ideia confiança e de confiança na inter-multi-culturalidade.
E é justamente nesses aglomerados imensos de betão que povoam as periferias que a diferença habita e o dissenso é norma. É aqui, nestes lugares imaginados por arquitetos imunes a contextos, que muitos crescem e criam raízes. Por entre as fendas, um apontamento verde embalado pelo vento; sobre os telhados minados de antenas e parabólicas, os grandes ícones urbanísticos ao longe. Em La Tour de Robespierre [A torre de Robespierre] e Kasbah saltamos de telhado em telhado, num bairro improvisado para os descendentes dos escravos libertados por este político francês. Pisamos propriedade alheia (mas alheia a nós, não ao Estado), com um vídeo de uma construção habitacional em altura como pano de fundo. A construção tipificada, enuncia a vivência normalizada do sonho socialista utópico.
Na galeria expositiva sente-se um pungente cheiro a cravinhos moídos, a especiarias exóticas trazidas por colonos, plantadas por colonizados. As ruas são habitadas por trabalhadores do sexo de géneros ambíguos. São o corpo que o explorador quiser. As putas que o olhar erótico e pornográfico do colono despe e veste. Paralelamente, a série Christine des îles, Olivia de Blida, Mounira l’oranaise, Kinuna l’algéroise faz desfilar transsexuais cujo corpo foi reparado, alinhado a uma identidade que se julgava desviada. A cirurgia é a cura para o alinhamento de corpo e espírito. Os dualistas encontram aqui confirmação às suas suspeitas.
Em Untitled (Couscous), os aromas intensificam-se num fausto banquete de couscous em forma de souks, cuja arquitetura influenciou grandemente Le Corbusier, pai de um Estilo Universal, de uma linguagem única para a arquitetura global. Complementa-se com hortelã e malaguetas, ingredientes gastronómicos indissociáveis de muitas culturas e tradições, incluindo as do artista.
O património memorial é refletido no último núcleo da exposição. O gesto laboral não é original. Laboramos segundo os gestos dos que nos antecederam, dos que nos ensinaram e dos que tiveram a generosidade de legar a possibilidade da construção de um futuro. A cura vem dessa extensa linhagem de ensinamentos que devemos à nossa memória e à memória dos antigos, porque a vida e a política são uma justaposição imbrincada de camadas de lembranças individuais, mas sobretudo coletivas.
Com a curadoria de Delfim Sardo, As raízes também se criam no betão está patente na Culturgest até 6 de janeiro.