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Dementi

Chuva, finalmente uma razão para ir de férias até a um sítio qualquer. Um motivo para sair da cidade. Para lhe provar que as coisas continuam a funcionar sem ela, que há outras, outras cidades onde outras mães vivem, as quais têm também filhas lindas. Sevilha ou Cádis ou ainda mais para sul. Num país distante onde não chove pelo teto. Toda a Europa está soterrada em neve, de Berlim a Maiorca. Neve, que já derreteu quando chega aqui e nos molha. Molhado como um cão. O apartamento molhado, tudo molhado, até a internet molhada, já que em Lisboa o mundo paira sobre longos cabos que vão de uma casa a outra. Lisboa é feia quando está molhada. A Praça do Comércio é feia, a ponte é feia, até a bonita senhora da fotocopiadora é feia. As pessoas escondem-se nos interiores, atrás de grossas paredes, na privacidade das suas casas, em camisolas grossas de gola olímpica, tão longe quanto possível, até que se sentem doentes, porque entram lá para dentro e começam a pensar em coisas que as pessoas não pensam quando o sol lhes brilha constantemente na cara. Um amor perdido, os amigos esquecidos, novos objetivos. Parece uma canção da Onkelz! Seja como for, Lisboa sentia-se com pouca vontade de arriscar, de maquilhagem borrada pela chuva, sem se aperaltar para a noite, afinal as pessoas aparecem sempre, até mesmo quando chove. A cidade mais ensolarada da Europa com 2,800 horas de sol por ano está enterrada, atrás de Valletta (que é uma ilha, ainda assim) e Marselha (que é uma mentira), na chuva, mas deleita-se nas estatísticas. Obviamente, a chuva não é nova. Não é novidade nas estatísticas, não é novidade para mim – é tão familiar para mim quanto o som dos skates e o cheiro a merda de vaca, só está apenas ligeiramente molhada em demasia para o sonho seco do Tejo. Estatisticamente, existem assuntos mais importantes do que o tempo. Em 2007, por exemplo, o Parque das Nações registou a mais longa onda mexicana no mundo com 8,453 pessoas. Mas, de vez a vez, gostaria de me dedicar aos meus costumes alemães. O tempo de merda, as estatísticas, seguir os chamamentos dos meus antepassados com os quais nada teria para discutir se não houvesse nada para reclamar. Precisamos simplesmente de reclamar, já que as coisas difíceis que aguardam serem processadas dentro de nós podem não nos ser importantes durante tanto tempo assim. Desde que haja salame pequenino na salada, desde que esteja demasiado quente ou demasiado molhado, desde que tudo costume ser melhor, um guarda-chuva é útil contra as lágrimas, e a espetada da avó combate o vazio interior. Mas quando uma cidade inteira foi construída durante o bom tempo, o tempo é tudo o que importa, é o condutor todo-poderoso no curso da sua vida quotidiana. O juiz do bom e do mau humor. Humor seco e sonhos molhados. No interior, nada funciona se tudo foi desenhado para o exterior. Sempre que chove (parece uma música diferente), procuramos em vão por um aquecedor para nos acalorarmos, uma lareira para nos secarmos e um ombro para chorarmos, porque já teremos ido novamente longe demais, longe de mais para dentro de nós mesmos. Para as novas metas, existem pelo menos resoluções (por exemplo, já não usar superlativos em 2018) e para os amigos esquecidos há mensagens curtas, gostos e muitas mais explosões de sentimentos que a internet oferece aos amigos esquecidos (se não estiver na Internet, nunca aconteceu). Por outro lado, para o amor perdido, não chegam os carateres românticos e bem cominados. É preciso muita lábia. Milan Kundera, um escritor checo que às vezes se adentra excessivamente em si mesmo, teve de escrever um pedido de desculpas romântico por esse motivo. O que a Bíblia significa para alguns desde o nascimento de Jesus significou para mim A Insustentável Leveza do Ser desde que choveu, parte 5, capítulos 8-12. Ámen! Normalmente fico feliz quando encontro cenas da minha vida em livros (ou em filmes), que me mostram confortavelmente que sou diferente, mas ainda assim parte de tudo. Desde que devidamente mal formulado, para que não encontre qualquer frase que gostaria de ter escrito nalgum momento da minha vida. Calculo agora o preço, pois o velho revolucionário escreveu muito antes que eu pudesse terminar de pensar no que eu já havia pensado durante algum tempo. Antes de poder dizer o que é tão difícil pensar, quando em Lisboa o sol nos brilha retumbantemente no rosto e saímos de nós mesmos, das paredes, do apartamento, da camisola de gola alta, quase a transbordar de alegria. Agora, esta frase está bloqueada, para sempre e sempre como Milan (sem superlativo!). E eu carrego-a como um memorial literário, como justificativa romântica da minha falta de vontade de me comprometer, como uma lenda explicativa do mundo, como uma fórmula para uma vida presunçosa, tão pequena como os pedaços amarrotados de papel no final do meu caderno, como uma desculpa por escrito. Afinal, por trás de affairs com mulheres, temos corações partidos que têm primeiros nomes e hobbies e, atrás dos meus 96 quilos, existe um pequeno maricas que não quer tudo isto. Tudo isto por causa ou devido à chuva? Semanas de chuva que transformam o último sábado seco antes da chuva numa pura lenda que foi metida num velho quadro, pendurado agora ao lado da nossa janela chuvosa, que agora se assemelha a uma portinhola, a visão de um submarino. Nos tempos em que ainda estava seco, o asfalto catrapiscava devido ao calor e era preciso afogar os cigarros na água antes de atirá-los à natureza, estávamos sentados com os nossos corações plenos, primeiros nomes e hobbies sobre um velho amigo, um Miradouro. Um vigia que tinha agora a sua segunda adolescência e ardia em nós ferozmente, mesmo que fosse velho e famoso. Segunda adolescência para o som semântico da palavra e ardente para a teatralidade. Um lugar para o qual nós também éramos velhos e famosos, que já havia sobrevivido a inúmeros conhecidos como os nossos. Numa inda e vinda, a vê-los entrarem e a saírem. Conhecidos que gostam de passar o dia após a noite e a modéstia da ressaca em direção à existência comum entre eles. Um lugar pisado dia após dia, que estava a ser alvo de uma saraivada de cigarros, cuspe e peidos (não por ela), tinha de certeza sede de uma molha. Não tínhamos qualquer plano para aquele domingo antes da chuva, exceto pedir café. Ela usava uma camisola de lã azul verdadeira em que a sua gargalhada teria sido suficiente para um filme e eu usava uma camisa de linho branco que teria sido insuficiente para o intervalo publicitário entre os dois. Acabei de voltar de outra, de outra cidade. Desde aqueles dias da minha antiga vida em lugares à janela que poupam espaço, onde morava em aeroportos e me tentei familiarizar e ser completo em impessoais quartos de hotel. Esperava ser recordado do meu belo casaco de ganga quando pela primeira vez entrei no quarto 308, que me foi vendido por um coração partido com que partilhei este mesmo quarto há um ano. Mas não havia nada além de uma cama cuidadosamente feita e pensamentos numa camisola azul real. Quem é que teria pensado nisto? Sempre quis ver um filme em que o herói fica sozinho no quarto do hotel, onde arruma a sua própria cama, mete os seus sapatos ao lado da porta com uma meticulosidade prussiana, põe as meias no parapeito da janela para apanharem ar, sem que voem para longe, e onde esse ramalhete parece ter bom aspeto no final. Alguém que chama o serviço de quarto, por ser diferente, querendo ainda assim continuar a fazer parte de tudo. Quem é que iria pensar que me tinha esquecido da minha cópia do Milan Kundera cheia de apontamentos no bar do hotel logo após a leitura. Quem é que iria pensar que no final da tarde de meu regresso, no último domingo antes da chuva, encontraríamos outra cópia usada de Milan Kundera, na qual poderia contar-lhe, a ele, o que o Milan me disse, mas onde considerei ser mais aconselhável ser uma terceira entidade a fazê-lo. Entendes? Se as pessoas pudessem ouvir o que dizíamos sobre elas aos outros, sem que soubessem que sabemos que conseguiriam ouvir o que temos a dizer sobre elas, o mundo seria um pouco mais simples e repleto de frases complicadas. Mal apreciamos o sol radioso no último domingo antes da chuva, por julgarmos que duraria para sempre, mas durante um momento particular, em que não éramos mais do que (ressaca). Milan teria ficado tão orgulhoso de nós e daquele momento! Por estarmos tão satisfeitos, porque não queríamos nada além do presente, do futuro e do passado. Nas cadeiras de um pequeno café, de onde poderíamos tirar toda a embriagada cidade. Por cima dos seus telhados perfurados, das suas varandas salientes, de cada história que aconteceu ontem à noite sob esses seus telhados e varandas. Quantas pessoas com ligeiras dores de cabeça podem estar a dormir umas com as outras neste momento, vindo-se cedo demais ou então não, e depois dizer que nunca leram Milan Kundera? Quantas pessoas poderão estar a consultar a previsão meteorológica para os próximos dez dias, arruinando o sol brilhante do seu último domingo antes da chuva? Quantas pessoas querem que estejamos errados apenas para que elas estejam certas? Quantos moram numa vitrina, numa existência (ou casa), que não é a sua, que se adaptam aos olhos daqueles que apenas veem, numa decoração de acordo com as necessidades de quem passa? Quase poderia ser de Kundera, exceto a janela. Quão bom teria sido o livro dele se tivesse sido escrito num portátil? Com toda a liberdade que o Microsoft Word lhe daria. Guardar, eliminar, copiar e colar. Sem qualquer nota ilegível, nenhuma frase começada sem retorno. Será que teria chovido no seu apartamento em Paris apesar da ajuda do feitiço? Quanto mais chuva o meu cimento português consegue aguentar até que ele deixe de ser uma esponja e se expresse para lá das notas em cima da minha mesa? Até mesmo os avôs que jogam as cartas na Alameda desapareceram, discutindo a mais longa pausa nessa cartada desde que se joga às cartas na Alameda. Normalmente fogem apenas da maré, apesar de todo o vento e clima. Até os turistas não conseguem ver mais nada, porque não resta mais nada para ver do que seco ficou. Até mesmo a indestrutível balaustrada em talha dourada de Versalhes, em Lisboa, a cafeteria com a maior variedade de biscoitos e o maior esfregão da cidade parece render-se lentamente. Tudo flutua em direção às Avenidas Novas, as novas avenidas, um bairro criado em 2012 onde parece que qualquer árvore foi artificialmente plantada por Deus, o próprio. Em 1755, quando Lisboa estava até com a água pelo pescoço, as Avenidas Novas foram a margem do tsunami que levou tudo com ele. Agora a água dá pelas meias do tornozelo e tenta passar pelas quatro grandes tromboses da cidade rumo ao coração da baixa, construída sobre mais água ainda. Sobre a Avenida da Liberdade, os Campos Elísios portugueses. A Avenida da República, um bypass deste século que adoraria ser uma avenida. Sobre a Almirante Reis, uma estrada que serpenteia por todas as classes sociais e já viu de tudo, de facas a talheres de prata polida. E, por fim, sobre o grande mistério da Almirante Gago Coutinho. Com embaixadas, jardins de infância, edifícios magníficos, nada que tenha muito tempo e um posto de gasolina. Recebeu o nome de um marinheiro que uma vez voou de avião entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Quatro grandes ruas que ligam infindáveis paredes, em que os queridos, os tais, os locais, pagam 45 euros de aluguer, e os outros, que querem ver os locais, pagam 45 euros por uma noite. Lisboa muda tudo, até a si própria. Lisboa faz-nos sentir, faz com que nos atrasemos, mesmo que já tenhamos querido pagar a contar e sair três vezes. Lisboa permite-nos que nos molhemos e que olhemos para a distância sem querer fazer nada com essa distância. Lisboa permite-nos odiar outras cidades, proíbe-nos de passar férias na praia com outras praias e parece ter-nos roubado desta vez, mesmo que por um período da tua vida, porque a cidade se torna um deserto após a chuva. Toda a água transformada diretamente num calor cortante. É sem dúvida melhor ler sobre ela à distância do que ficar molhando. Assim como é melhor ver um navio de cruzeiro a zarpar da costa do que sentarmo-nos num, isto sem mencionar os aviões. Voar é algo muito específico, mas um assunto diferente. Mas só podemos sabê-lo se já voámos com frequência suficiente (nunca me sentei num cruzeiro). Não tenho a certeza se alguma vez quero sequer olhar para um cruzeiro no meu pôr-do-sol aposentado, mas adoraria escrever sobre as coisas de ontem com a sabedoria do amanhã. Enquanto não puder fazê-lo, terei de continuar a ler Milan Kundera e dar autorização para que seja roubado das frases que teria escrito nalgum momento. Mas apenas porque, talvez, relacionamentos, inveja e poligamia não sejam os meus assuntos de interesse de qualquer das maneiras. Não sei nada sobre isso. Sou um cão (molhado) que já não quer utilizar superlativos em 2018 e que corre atrás de um carro sem saber o que fazer quando ele para. Um intervalo? Mijar-lhe em cima? Ter uma conversa engraçada? Sou um comboio que tem acelerado pelas metrópoles europeias, neozelandesas, americanas e australianas há anos para estabelecer uma comparação entre as suas ideias e as do mundo. Sem olhar para a esquerda ou para a direita. Apenas em frente, para a frente, é precisa apenas seguir o nariz ideal! Quando o comboio parou, fê-lo só durante umas horas solitárias, por desejo incondicional, e números de telefone trocados que permitiram pelo menos uma segunda oportunidade. É que tudo o resto representava um engano interno e o comboio avança sempre da mesma forma, dê lá por onde der. É que nós levamo-nos a sério até deixarmos de conseguir explicar o nosso ego animal, que não quer ir à ópera (mas passa por lá), que não segura a porta aberta para quem vem atrás (ou que dá sinal dos 4000), que não lê Kundera, com as ferramentas morais de hoje. Como o cão (molhado) que não quer ouvir o sino do casamento. Sem estabelecer uma conexão ao vínculo e sem se importar com nada particularmente apreciado e partilhado em noites de cinema. Apesar de estarmos a falar de Conditio Humana, prefiro escrever sobre o tempo, as estradas portuguesas e os saltos altos vermelhos calçados pelas longas pernas acima deles. Qual a razão também de toda a consciência terrivelmente má, a qual pode ser melhor descrita com um súbito trânsito – ou controlo de passaportes? Qual a razão de todo este sentimento desconfortável que conhecemos de igrejas, de campos de golfe ou de traições? Dos sem-abrigo para quem não tínhamos um cêntimo ou para músicos de rua que ignorámos, mas ouvimos. Tudo precisa de uma moldura, caso contrário tudo é nada. O nada da infinita relatividade da internet, o nada da oferta excessiva de um guarda-roupa e o mundo aberto que nada é mais além de um excesso singular. Tudo carece de contradições e repetição, não para ser o melhor, mas o mais satisfeito dos melhores. Pelo menos Kundera e eu dizemo-lo. Escrever é como amar uma mulher que depois nunca mais queremos ver. Como tal, tudo deve ser dito com esta história antes que novas apareçam. Novas ideias que não querem esconder-se atrás de um personagem num romance e vão contra todos os ismos de toda a liberdade que se faz necessária para sermos uma pessoa real. Peço também desculpa, mas é impossível não gostar! Até ter desenvolvido os meus músculos e parar de acreditar em ideais. Até que as pessoas parem de ir ao cinema para se conhecerem e os homens parem de usar guarda-chuvas (e meias pelo tornozelo), que então secam (e se dobram) com um cuidado que nos assusta. Até que possamos mudar o signo e que eu seja feliz com uma de balança. Até lá eu continuo a ir à minha escola noturna para relaxar ao final do dia e talvez encontrar alguém sem me aperceber que estou a conhecê-lo nesse momento (para permanecer na minha verdade). Até lá, o ciúme permanece como um veneno estranho que, subitamente transforma um lado em dois, e quebra todas as leis que foram usadas para nos explicá-lo até aqui. Até lá levo um pedido de desculpas romântico comigo e cito Milan Kundera pelo menos quando chove.

Konstantin Arnold (1990) é autor e fotógrafo e escreve peças para jornais (Frankfurter Allgemeine Zeitung) e revistas (Vice, Der Spiegel…) de forma a poder comprar vinho e azeitonas portuguesas. Há mais de uma década que visita Lisboa, para agora finalmente se decidir permanecer aí, depois de anos sem casa a viajar pelo mundo como jornalista. De momento está a trabalhar no novo livro Letters from Lisbon, de onde se retiram as estórias que aqui se publicam. A sua página oficial é www.konstantinarnold.de

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