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O regresso à consciência ecológica da arte, segundo Tadashi Kawamata

Fausta de tecnologia e saber, a humanidade vive na opulência do que produz. A modernidade incrementou a sobreprodução de forma acrítica, cega às consequências e envolta num antropocentrismo que recusa a paridade das restantes espécies com que partilha o planeta. Sai mais barato produzir 1000 do que produzir 1. E enredados na tipificação e normalização decadente neoliberal, perde-se a noção de escala e de necessidade. A natureza é incompatível com economia; o cosmos incompatível com a moeda.

Vive-se a abundância. Vive-se a sombra da utopia positivista e científica. Vive-se a distopia dos detritos amontoados, do desinteresse ecológico, do laxismo. Vive-se a distopia do lixo.

Porém, e em alternativa, é possível que se viva também a utopia distópica da lisura, do polimento, do coletivo humano mundial que recusa a alteridade, as excrescências, o que não é polido e não brilha. Byung Chul-Han fala amiúde deste novo homem contemporâneo que se revê nas superfícies redondas, refletoras e sem rugosidade dos dispositivos eletrónicos, que recusa o que é orgânico ou se lhe assemelha como tal. O comportamento do homem perante o lixo é reflexo de um ser que não consegue ligar com o feio, com o resto, e que, portanto, rejeita determinantemente olhar para a sua verdade ctónica.

Quando a arte olha para o lixo como suporte expressivo, fá-lo na dupla razão estética e ética, ou, se preferirmos, uma estética que não recusa a componente ética que lhe é intrínseca. E é curioso perceber a forma como cada artista trabalha o lixo nesta dupla vertente que, por vezes, no espectador, pode gerar tensões.

Há indiscutivelmente uma tensão interior quando contemplamos a instalação Over Flow de Tadashi Kawamata na Sala Oval do MAAT. Mas essa tensão será mais condizente com o modo despiciendo, irresponsável e burguês de ver o lixo. O lixo é feio, abjeto, conduz-nos a um entendimento visceral dos nossos sistemas internos (biológicos e sociais) que recusamos ver, justamente, pela sua fealdade. O lixo conspurca a brancura pristina do museu que durante séculos era a instituição hierárquica do gosto. Esta visão primitiva e arcaica de entender o museu ainda está profundamente enraizada em qualquer indivíduo. E esta interpretação (semiótica, se assim se entender) do lixo trava uma leitura mais aprofundada das matérias em exposição. O museu, é importante relembrá-lo com alguma frequência, sobretudo no contexto da arte contemporânea, é um lugar de confronto e de incómodo, que obriga a releituras várias, estimula o debate e a investigação. O gosto, o belo, são secundários.

Nesta obra, e em muitas outras do MAAT, a compreensão ética é mais percetível do que a estética, pese embora o jogo de sombras projetadas quando dentro da instalação, que bebe à tradição e construção japonesas. É possível uma crítica a esta exposição recorrendo à célebre – e certamente coerente – visão de Paraíso Artificial de Claire Bishop. Mas é possível, também, que tal esforço seja inglório tendo em conta a premência do que está em causa. O lento mergulho na onda de lixo é uma imersão nos dejetos da sociedade moderna e hiperindustrializada e, ao mesmo tempo, uma necessária tomada de consciência disso mesmo. Esta é uma imagem que guardamos de uma qualquer praia de um país designado de subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento: extensões imensas de plásticos, vidros e metais que dão à costa para repousarem nas areias das praias ao sabor das marés, ao lado de espécies animais mortas pela toxicidade das águas, por seu lado, repletas de microplásticos. A natureza devolve-nos o que por nós foi rejeitado e por ela também.

No entanto, este é plástico resgatado de praias e águas portuguesas, lixo provavelmente nosso, provavelmente viajado de outros cantos do mundo, trazido por correntes oceânicas, que veio desaguar aqui, no nosso quinhão de terra. E que injusto, termos que lidar com o lixo dos outros! Lixo migrante, certamente mais corrosivo e infeto que o nosso. A ousadia da natureza de não respeitar as nossas zonas costeiras, as nossas fronteiras marítimas. O desplante! Sparagmos, palavra grega, clássica, para designar o comportamento violento da natureza em relação a tudo, inclusive ao que é nosso. A natureza dilacera, corta, reduz a pedaços aquilo que produzimos, as certezas e conquistas, as fronteiras e o edificado. Um corte por estes despojos oxidados e puídos equivale a uma infeção por tétano. A natureza não se importa e a sua autorregulação é concomitante de uma paisagem dantesca. A natureza não tem fronteiras.

É um inferno de instalação. Mas o crítico deve interrogar-se e interrogar os responsáveis até que ponto é este um Paraíso Artificial, até que ponto não estamos perante um exercício retórico que relaxando na parte estética, compromete também a ética e, desta forma, o real engajamento social e político que deveria suscitar. Marta Jecu, uma das curadoras a par com Pedro Gadanho, escuda-se noutro crítico e filósofo, Bruno Latour, segundo o qual há urgências mais prementes às quais se deve atender num exercício alargado das várias ciências que compõem o saber. E é com esta deixa, e em jeito conclusivo, que se reiteram algumas das questões por ele deixadas. “What are we supposed to do when faced with an ecological crisis that does not resemble any of the crises of war and economies, the scale of which is formidable, to be sure, but to which we are in a way habituated since it is of human, all too human, origin? What to do when told, day after day, and in increasingly strident ways, that our present civilization is doomed; that the Earth itself has been so tampered with that there is no way it will ever come back to any of the various steady states of the past?”

O homem é o barco da instalação de Kawamata: de proa submersa, no meio da onda, à deriva nas suas próprias falhas, a afundar-se no tédio consumista que absorve e regurgita de imediato. Até ao fim das espécies, até ao fim da distopia – lisa, árida, estéril.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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