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“Escutar as Águas” nas obras da Coleção Schneider e de artistas portugueses

Ainda vai a tempo de visitar as exposições do Museu do Dinheiro e do Torreão Nascente, que se encontram em diálogo num título sugestivo. Organizadas em núcleos temáticos, sob a curadoria de Paulo Pires do Vale, são obras contemporâneas de 35 artistas, 20 dos quais provenientes da Coleção F. Schneider, que venceram o Concurso Talents Contemporains, expostas pela primeira vez fora de França e de 15 criadores portugueses, oriundos da Fundação Gulbenkian; Serralves e da FCC. Viagens de descoberta, naufrágios, mitos originais, plasticidade e a passagem do tempo formam os principais temas.

Qualquer dos locais escolhidos foram bem estudados porque proporciona um dimensionamento adequado, surgindo em ambos não longe do elemento da água, junto ao rio dentro de uma variabilidade formal. A arquitetura interioriza e conduz à complexidade e riqueza da matéria em questão, acolhendo na perfeição os trabalhos desenvolvidos em torno de uma viagem profunda que as águas nos levam e trazem num movimento assumidamente contraditório.

A água molda o mundo e esta é moldada por ele, numa dupla ação assumida. A água em si não possui forma, bifurca e abre caminhos, numa construção/destruição; mata ou salva vidas, purifica ou polui, mas é sempre vital. Num movimento constante, adapta-se aos volumes que encontra no percurso, sem princípio nem fim.

É sobre este estatuto paradoxal da água que a exposição se debruça, numa narrativa sobre a sua materialidade e o seu simbolismo, investido de valores humanos, “fonte de perigo”, mas também de “esperança”, num laço entre o significado da vida e da morte. É uma área abrangente que se presta à prática artística num encontro de soluções, indo ao encontro no plano empático de um público heterogéneo. Escutar as Águas produz um duplo sentido, o de fazer uma revisitação e apelando ao som das águas, no bater constante das ondas num mar tranquilo ou inquieto.

A exposição propõe que nos lancemos na corrente, conscientes de que estamos já embarcados

No piso 1 do Torreão Nascente o ciclo Do tempo distingue-se com dois trabalhos de forte plasticidade: a instalação de E. Konovalova de um tapete estendido de calhaus dispostos num desenho rigoroso do maior ao mais ínfimo e a criação do ambiente Atravessar o mar suspenso de C. Nogueira numa vasta área alva, textura que pretende sugerir a envolvência do mar revolto e esponjoso em que o público só tem acesso a ele apenas através de um passadiço, tornando-se o seu acesso inacessível.

Optei por escolher duas peças determinantes, tridimensionais, que funcionam como uma mola impulsionadora e motor de arranque. Isto é, a instalação escultórica Danae de F. Tropa constituída por duas obras geminadas que abrem o ciclo Da origem no Torreão Nascente e a escultura de chão Metáforas da Água de A. Carneiro, deitada no centro da nave do Museu.

Na de Tropa, a água aparece como elemento físico, fala por si, o líquido vai caindo num fio, aliando-se a um som intermitente, fazendo parte de um dos mitos da água, Danae que mesmo presa e solitária foi fecundada pela chuva dourada por Zeus, que se apaixonou por ela.

Por sua vez, o trabalho de A. Carneiro torna-se nuclear, sobretudo se o observarmos na perspetiva de cima, fazendo lembrar uma plateia recheada de pessoas numa atitude de meditação, algo de comovente. É revelador o contraste visual estabelecido entre a horizontalidade da configuração da peça e a verticalidade de um longo cortinado que atravessa todo o espaço, intervenção plástica em tecido de F. Fragateiro, que toca o irreal, que se destaca numa arquitetura monumental já de si poderosa e que fez parte da remodelação espacial da antiga Igreja de S. Julião; próximo estão também esculturas de chão de M. Rosa.

O elemento da água é assim evocado noutras composições, não menos expressivas, como nos vídeos de F. Calhau; o seu aspeto transparente é explorado no Mur de Larmes de Mugot, onde as gotas avolumam-se, ganhando uma especial materialidade; bem como no objeto de vidro Boule d’eau situado de frente de uma das janelas de P. Bailly-Maître.

Uma das distinções entre os dois espaços é que no Museu do Dinheiro tem a particularidade das obras ali expostas se encontrarem integradas nos objetos museológicos permanentes, num exercício visual que não deixa de ter uma faceta lúdica no processo de descoberta que não existe no Torreão. Tema convidativo, que constitui para certos autores um pretexto para a criatividade. Algumas aproximam-se mais da água, outras são estudadas sob metáforas onde a leitura é menos evidente, contudo, perante a seleção, num exercício subjetivo e refrescante, não deixa de dar que pensar.

Afinal, existe uma sabedoria e força plástica nas águas que é preciso escutar.

Manuela Synek é colaboradora da revista Umbigo há mais de dez anos. À medida que os anos vão passando, identifica-se cada vez mais com este projeto consistente, em constante mudança, inovador, arrojado e coerente na sua linha editorial. É Historiadora e Crítica de Arte. Diplomada pelo Instituto Superior de Carreiras Artísticas de Paris em Crítica de Arte e Estética. Licenciada em Estética pela Universidade de Paris I - Panthéon – Sorbonne. Possui o "Curso de Pós-Graduação em História da Arte, vertente Arte Contemporânea", pela Universidade Nova de Lisboa. É autora de livros sobre autores na área das Artes Plásticas. Tem participado em Colóquios como Conferencista ligados ao Património Artístico; Pintura; Escultura e Desenho em Universidades; Escolas Superiores e Autarquias. Ultimamente especializou-se na temática da Arte Pública e Espaço Urbano, com a análise dos trabalhos artísticos onde tem feito Comunicações. Escreve para a revista Umbigo sobre a obra de artistas na área das artes visuais que figuram no campo expositivo fazendo também a divulgação de valores emergentes portugueses com novos suportes desde a instalação, à fotografia e ao vídeo, onde o corpo surge nas suas variadas vertentes, levantando questões pertinentes.

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