Prata da Casa
A dada altura, Mário Afonso diz que houve uma fase da sua vida em que “perdeu o corpo”. Alguns dias após a nossa conversa, na minha cabeça, há um movimento largo de braços que liga essa frase ao motivo pelo qual foi criada a Prata da Casa: registar para a posteridade os corpos que têm coreografado a dança contemporânea portuguesa.
A ideia de algo parecido com a Prata da Casa nasceu em 2004/05. Mário foi convidado para fazer uma residência artística em parceria com um artista plástico e essa união fê-lo pensar nesta “coisa solitária da criação artística e na sensação de que estamos sempre a desbravar um novo caminho e, às vezes, estamos todos, não a trabalhar na mesma coisa, mas em coisas que se tocam”. E sentiu a necessidade de tentar perceber o que os outros artistas andavam a fazer, a pensar, a ler.
Em 2008 produziu o espetáculo Entre Vistas, no qual convidou 23 artistas de disciplinas diferentes – da dança ao cinema, passando pela literatura e pelo teatro – para lhe fazerem perguntas a ele. “Era uma espécie de consultório de psicologia”, diz entre risos, mas circunscrito à ideia da criação artística. O projeto dividia-se em três objetos: o espetáculo em si, uma instalação e um livro onde estariam compiladas todas as entrevistas. Os dois primeiros aconteceram, o último não, mas mais uma vez Mário cruzou-se com essa ideia das conversas sobre o que é isto de ser artista e quis concretizá-la.
Uma das principais questões – e quase ponto de honra – era como criar um objeto desta natureza que não precisasse de ser comprado e que chegasse a toda a gente. Depois de muitas voltas e reviravoltas, chegou a um conceito de vídeos documentais que seriam colocados numa plataforma online. Também percebeu que não queria que fosse um trabalho de pergunta/resposta, porque “às vezes as respostas parecem vir apenas confirmar as perguntas, sem acrescentar muito mais. Queria saber mais sobre as pessoas, o seu trajeto, o que a dada altura as tinha feito virar à esquerda e não à direita ou ir em frente. Sobre esses momentos pessoais que são decisivos na vida e na carreira”, explica.
Para testar a fórmula, convidou dois amigos: Miguel Pereira e Sónia Baptista. A proximidade afetiva dava-lhe mais liberdade para experimentar e errar. Começou por ter uma conversa prévia com ambos, fora de câmara, na qual explicou que queria um discurso na primeira pessoa, sem qualquer intervenção da sua parte. Queria saber de viva voz como começaram a dançar, como desenvolveram as suas ferramentas enquanto bailarinos e coreógrafos para chegarem ao ponto onde estavam naquele momento e o que sentiam em relação à dança hoje em dia.
Chegou à conclusão de que esta fórmula funcionava. A partir dai, era preciso balizar as escolhas. Onde começa e termina o que se quer mapear na Prata da Casa? Decidiu que teria como ponto de partida o movimento da Nova Dança Portuguesa. Criado no início dos anos 90, coincidiu com o despontar das primeiras estruturas associativas que permitiram o crescimento de uma comunidade independente de dança contemporânea em Portugal. Foi também no contexto deste manifesto que Mário começou a dançar.
Para além dos já referidos Miguel Pereira e Sónia Baptista, alguns nomes eram óbvios: Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho. Juntamente com Sílvia Real, Sofia Neuparth, Carlota Lagido, Margarida Bettencourt e Gil Mendo compõem a lista de nomes registados até agora pela Prata da Casa.
E neste momento impõe-se a pergunta: onde termina o registo, onde ficam as novas gerações? “As novas gerações estão a fazer um trabalho importantíssimo na tradução da atualidade, da contemporaneidade. Estão a ler o seu próprio tempo. Mas interessa-me este trajeto mais histórico, que tem outra sedimentação. Ainda há ali [nas novas gerações] muito espaço para a dúvida que pode mudar muita coisa. Não que alguma vez paremos de nos questionar, claro. Mas acho que a nova geração vai ter tempo para criar esse sedimento e de alguma forma transformar-se na “velha geração” até eu terminar de entrevistar os nomes que ainda tenho em carteira”, explica Mário Afonso.
O próximo passo é sair de Lisboa. A próxima paragem já planeada é no Porto, em setembro, para falar com Né e Isabel Barros (fundadoras da escola Balletteatro) Joana Providência e mais nomes que possam surgir entretanto. Em Lisboa ou fora, tem desde o início apenas um apoio: cedência de material de filmagens da Terra Treme.
Em paralelo com a Prata da Casa, há a Carta Branca, a associação criada em 2009 por Mário Afonso. Numa altura em que o seu trabalho passava por um ponto alto, começou a fazer sentido criar uma estrutura onde pudesse dar aos outros aquilo que sempre encontrou nas pessoas com quem trabalhou – liberdade (ou carta branca) para poder errar.
Embora tenha sido criada em 2009, foi só a partir de 2013 que a Carta Branca começou realmente a funcionar. Pelo meio, houve a crise que não poupou ninguém e uma passagem de Mário pela Universidade Nova. Primeiro como aluno externo de Filomena Molder (com quem tem trabalhado várias vezes ao longo dos anos) no departamento de Filosofia do curso de Estética e depois como aluno de mestrado. Embora tenha sido uma experiência muito enriquecedora, sente que houve um corte entre a cabeça e o corpo. “De repente era tudo cabeça. Qualquer gesto que eu desenhasse para iniciar qualquer projeto coreográfico era profundamente questionado por mim. Perdi o corpo. E dediquei-me mais à formação. Se antes era 5% da minha atividade, nessa altura passou a ser 95%”, explica.
À medida que a crise financeira se ia atenuando, também o corpo começava a despertar e com ele a vontade de perceber que conhecimentos de Filosofia tinham ficado na ponta dos dedos. Hoje em dia, a Carta Branca ocupa um escritório no espaço do Fórum Dança e Mário é frequentador assíduo dos estúdios de ensaio. Está a tentar perceber que respiração tem o seu corpo agora.
Continua a dar workshops a bailarinos e coreógrafos, mas também a pessoas que não são profissionais. Dos 3 aos 80 anos, para perceber as diferentes pulsações que fazem mexer o corpo em cada etapa da vida.