Top

A conspiração das formas, no Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões

É fora das portas dos museus e das galerias que a arte nasce, que os artistas imaginam, criam e produzem. Como tal, a exposição de obras em locais alternativos e inabituais pode ser compreendida como um retorno das mesmas à sua origem, ao lugar de onde provêm, ao mundo. Uma grande instituição cultural pode destacar-se ao reconhecer esta realidade e, de acordo com isso, na iniciativa e na ação de levar a sua coleção mais longe, permitindo que esta viaje, circule e se estenda, ocupando e habitando outros espaços. Neste sentido, a Fundação de Serralves é um exemplo significativo de uma clara consciência da essência da arte e do que é necessário para que essa exista nas suas maiores possibilidades.

Pela segunda vez, o Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões é palco de uma exposição da coleção do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, agora pela mão de Gabriela Vaz-Pinheiro, cuja sensibilidade e consciência estética que detém enquanto artista se revelam na curadoria realizada. A curadora reconhece a importância do espaço e do contexto em questão, identificando esses dois elementos como absolutamente determinantes na seleção das obras e na conceção de todo o projeto.

De acordo com isso, e verificando-se um resultado tão harmonioso quanto inesperado, alguns dos trabalhos expostos ocupam com grande naturalidade a área que lhes foi destinada, como se a ela pertencessem, o que é particularmente curioso já que o local não é destinado à exposição de arte. Tal é o caso de Narrow White Flow (1967-68), de Hans Hacke, cujo constante movimento ondulante se relaciona com a envolvente, tanto com o interior fluxo de mobilidade do terminal como com o exterior, o profundo oceano Atlântico. Também a pintura de Bruno Pacheco, Shoreline (2009), que ilustra uma grande baleia na costa, remete para o mar, sugerindo a reflexão sobre a atual condição das águas, dos ecossistemas e do futuro do planeta. Ainda, a obra de José Pedro Croft, de 2008, constituída por ferro, vidros e espelhos, instala-se de modo claro, quase evidente, refletindo o magnífico edifício do arquiteto Luís Pedro Silva bem como o exterior, o mar, a estrutura portuária e todo aquele que percorre este espaço.

Este último, o público da exposição, variado e plural, não sendo necessariamente o habitual visitante dos museus, mais instruído e familiarizado com a arte e a cultura, é, pelo contrário, composto por todo o indivíduo que se movimenta, entre viagens, por este local. Assim, a exposição pode ser objeto de olhares prolongados, atentos, interessados e conhecedores, ou de outros, mais breves e fugazes, estabelecendo-se, entre as obras e os eventuais espectadores, relações caracterizadas por uma certa contingência, como explica a curadora.

Ao vasto público desta exposição é-lhe devolvida uma mesma pluralidade, patente na autoria das obras a qual é variada, nacional e internacional e ao nível de imagem, estrutura e formalidade de cada peça, que se apresentam heterogéneas e representativas de diferentes dinâmicas e áreas da arte contemporânea. Desde a sua criação, em 1980, que a coleção de Serralves foi desenvolvida com o intuito de ser diversificada e constituir uma amostragem da produção artística do país e do mundo. Este programa de itinerâncias da instituição, organizado por Marta Moreira de Almeida e Ricardo Nicolau, permite uma melhor concretização desse objetivo, ao mesmo tempo que reforça alianças importantes, neste caso, com a APDL (Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo).

No que diz respeito aos artistas nacionais presentes na atual exposição, é inevitável destacar Pedro Cabrita Reis, com Echo der Welt (1993), no hall de entrada. Como a curadora refere, a obra em questão possui uma forte referencialidade espacial em relação ao que a rodeia e ao que ela própria representa, a desconstrução de um espaço. Perto, encontram-se, também, trabalhos de Rita McBride e, visível a partir de dentro, uma escultura de mármore de Jene Highstein, de 2000, que institui uma comunicação entre o interior e o exterior, reforçando o conceito fora de portas.

Na lateral da extensa rampa central, exibe-se uma obra de Rui Chafes que insere uma noção de escala em relação ao edifício e introduz o artista de quem também se apresenta, no piso superior, uma outra peça. Esta última, invulgar estrutura de ferro, assemelha-se a um conjunto de confessionários e confronta o espectador com os mais diversos níveis, tanto visual como física e conceptualmente. Instalando-se com impacto, estabelece uma força e uma autoridade muito particulares e absorventes. Ainda se contam presenças de nomes relevantes tais como Cildo Meireles e António Barros, ambos introduzindo um caráter político e crítico à exposição, como lhes é próprio, e também Ana Jotta, Bruce Nauman, Damián Ortega, José de Guimarães, Leonor Antunes, Lawrence Weiner, Richard Artschwager, Rita Magalhães e Susanne Themlitz.

A presente ocasião alarga a criação artística a nível global e individual, cada uma das peças apresentadas ganhando uma nova vida. As obras renascem perante este novo contexto e revelam características e possibilidades que se mantinham por descobrir e que conduzem a, novas, interpretações e experiências para os que as recebem. Como Gabriela Vaz-Pinheiro refere, a exposição propõe uma reformulação dos significados das peças e, a partir do incontornável livro de John Berger, Modos de ver (1972), promove a consciência de que os objetos artísticos, quando são produzidos num passado próximo, estão em relação com o tempo presente e garantem, assim, a sua liberdade futura.

A curadora explica que, como o título indica, assiste-se, no Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões, a uma conspiração das formas que deve ser compreendida em relação aos múltiplos sentidos e significados de cada imagem e material que desafiam, confrontam e exigem da parte do espectador um certo comprometimento e disponibilidade para a concretização de várias leituras e interpretações. Gabriela Vaz-Pinheiro confessa, ainda, depositar, na exposição, a expectativa e o desejo de que “cada uma destas obras traga uma nova forma de ver o mundo”.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)