É sangue, é universo
Gilda Nunes Barata reeditou recentemente, com a chancela da Livraria Lello, o livro Saudade, numa versão trilingue (português, inglês e espanhol). É uma edição muito melhorada daqueloutra que foi dada à estampa em 2001, com o título “O que é a saudade, querido José Maria”.
A capa dura do livro actual e o seu formato, maior do que é habitual, conferem-lhe uma qualidade objectual, valorizando, por outro lado, o desenho gráfico do livro, agora também ilustrado pela poeta que faz acompanhar o texto de um rendilhado azul, de gosto Art Deco, que se reinventa no decurso da leitura, em consonância com o ritmo sinuoso do discurso.
Saudade é um longo poema em prosa, sub-dividido em 27 capítulos que incidem sobre temas tão variados quanto a saudade, o medo, o mistério, a alma, uma ferida, uma ilusão ou uma alga, entre outros – tópicos de onde irrompe uma torrente inesgotável de reflexões, indagações e especulações justapostas umas nas outras sem uma ordem lógica evidente, a não ser, talvez, a sucessão diacrónica dos instantes inspirados que as viram nascer. É a própria autora quem nos autoriza esta hipótese interpretativa, quando escreve: “(…) por que é que nos mandam emendar um texto, se o que o redime é ser nosso? Se a única coisa que vale a pena é sermos nós em tudo o que façamos?…”
Tecendo uma malha intrincada de sons, ritmos, sentidos e imagens que se complementam, estilhaçam, sublimam e desafiam, este texto, exuberante e pungente, reclama do leitor a disponibilidade para o escutar na sua original indiferenciação entre o sensível e o inteligível, o bem e o mal, o amor e o terror, o sorriso e a lágrima. A poesia de Gilda Nunes Barata situa-se aquém da dualidade! Tudo se entrelaça nesta alvorada poética que anuncia o primeiro dia da criação, quando o que já existe ainda não está nomeado.
Apenas sorvendo o mistério sem nome que nos constitui poderemos navegar, com a poeta, no “movimento dos barcos embalados no teu sorriso”, visitar os “castelos que são poços de água imunda“, ou banharmo-nos nas “cascatas prenhes de absoluto”.
Todo este livro é inclassificável, indefinível, não só no que respeita ao género literário onde queiramos, por mero facilitismo, arrumá-lo, como também no que se refere à construção poética, holística, que o enforma.
Apesar de estar dedicado a um sobrinho da escritora que à data da redacção do livro tinha apenas três anos de idade – sendo o livro o penhor da profunda ligação afectiva que os une -, Saudade pouco tem de infantil, exceptuando os momentos em que a linguagem, abismada, talvez, pelo vórtice indomável da sua origem, enfeita-se em diminutivos e escorrega delicadamente para um tom pueril, interpelando directamente a criança – alter ego da autora – e acarinhando-a com histórias de mimar, como quando lhe recorda “que a osguinha mais nojenta gosta de ter no universo o seu lugar.(…) Ela gostaria que alguém a beijasse (…)”.
Mas logo no capítulo seguinte, dedicado ao mistério – que “não existe, mas está em todo o lado” -, Gilda Nunes Barata aconselha o seu sobrinho José Maria a segui-lo “perto de ti, colado a mim, no segredo que não ousaste revelar… porque (…) és filho de Deus e da sua mentira.”
A já longa obra poética de Gilda Nunes Barata – este livro não é excepção – é profundamente marcada por um sentimento de perda, de incompletude e de exílio emocional que a poeta compensa e redime através do amor; o amor universal que ama sempre e ama tudo incondicionalmente – uma flor, uma pessoa, uma ilusão… -, o amor enquanto manifestação visível do sobrenatural que ora se revela ora se esconde. Isto mesmo se revela quando, discorrendo sobre o mistério, a poeta identifica-o com o “adeus que nunca se disse e Deus fê-lo perene…” ou, ainda, quando “a pessoa que mais amamos e pensamos ser um vulto, mas foi um ser definido que nos quis, nos ergueu e depois se despediu. Se despediu sem dizer por quê, para onde ia, o que a levava. Mas foi. E ainda pressentimos o seu sentir. Ainda a esperamos em cada esquina ou então vemo-la num altar a orar, no rasto de um aceno…”.
Tal como Nicolau de Cusa, em O Deus Escondido, também Gilda Nunes Barata podia bem ser aquele indivíduo a quem perguntaram: “Quem és tu? Sou cristão. A quem adoras? A Deus. Quem é esse Deus que adoras? Não sei. Como é que adoras tão seriamente o que ignoras? Adoro porque ignoro…”, argumento lapidar para contrapor à tentação da finitude.
Mas, afinal, o que é para Gilda Nunes Barata a saudade? “É o húmus sedento de ser flor…”.