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Pan African Unity Mural: Ângela Ferreira sobre a experiência intersecional da comunidade africana

Pan African Unity Mural é também a história do regresso – de um eterno regresso ao ponto de partida. Ângela Ferreira (1958–) regressa à Casa Comunitária da Cidade do Cabo, na África do Sul, ao encontro de um mural colaborativo pintado por um coletivo artístico que aí integrara, ainda na década de oitenta. Por essa altura, inaugurara já a sua trajetória de interseção: vinda de Maputo, em Moçambique, conhecera então uma outra faceta da realidade africana daquela época. Por isso, e sem surpresa, compreendera a força do poder e o poder da violência. Pois que vivera de perto a brutalidade do colonialismo e do apartheid. Eis o ponto de viragem – ou, enfim, o momento em que se questiona sobre o seu lugar no mundo e sobre a sua relação com o outro. “Perguntei a mim própria quem eu era” – revela a artista, quando entrevistada por Katarina Pierre (1962–), a diretora do Bildmuseet.

Ângela Ferreira iniciara então o seu percurso artístico, orientado pelo compromisso social e político e alimentado pela atitude crítica e interventiva, assumindo, logo à partida, um registo absolutamente contextual. Com efeito, abrira caminho a uma prática artística de profundo envolvimento com o seu próprio contexto e, nesse sentido, de permanente questionamento sobre a sua própria condição. De acordo com a artista, uma condição que fora sempre a da interseção: uma vida em circulação, para cá e para lá da fronteira, tão longe, tão perto, irremediavelmente no interstício, num lugar entre, em todo o lado e em lado algum. Isto é dizer, de outro modo, uma vida no plural. Por conseguinte, uma obra de dentro para fora, aberta ao mundo e ao outro. Só que de verdade. Ora, neste caso, o dito comprometimento não se afigura como um artifício discursivo para a legitimação de uma determinada operação estética. Afinal, a artista despertara para um tema ainda apartado da tendência, ainda distante do processo de institucionalização que o colocaria, em última instância, sob uma lógica de instrumentalização – essa que habita, de modo mais ou menos evidente, todo o sistema da arte contemporânea.

“Como reagi eu naquela época e o que significa isso agora?” – atira depois, na mesma entrevista. De facto, uma questão que se desdobra ao longo do seu percurso artístico e que se cristaliza neste projeto expositivo. Em 1986, um mural na Casa Comunitária da Cidade do Cabo, na África do Sul, em África. Em 2018, um mural no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa, em Portugal, na Europa. Porém, um único mural. Pan African Unity Mural constitui, sobretudo, um exercício de perspetiva a partir dessa primeira intervenção. Segundo Jürgen Bock (1962–), o curador do projeto expositivo, este “é concebido, retrospetiva e introspetivamente”, para a realidade presente. Por certo, aquele primeiro mural surge agora atravessado pelo olhar contemporâneo, apresentado a partir de uma leitura genuinamente contemporânea. Ângela Ferreira celebra a dimensão contextual da prática artística, ainda que não como até então. Importa notar, desde logo, que traz consigo não apenas o mural, mas também o seu contexto. Pois bem, a artista projeta na parede imaculada da Project Room um registo fotográfico – de sua autoria – que inclui não apenas a área pintada, mas também o seu enquadramento arquitetónico atual. Além disso, tira partido do jogo perspético que decorre da própria projeção – em todo o caso, sobre uma superfície curva.

Pan African Unity Mural incorpora, a um tempo e no mesmo espaço, uma história esparsa e necessariamente fragmentada. Assim, este outro mural surge como uma manta retalhada: a partir da personagem e do episódio, em memória de, a memória para, do individual para o coletivo, sempre de dentro para fora, o caso que faz a história, a história que nunca se fez. Ângela Ferreira narra a experiência intersecional da gente africana: uma vida na charneira, na iminência do intervalo, ao encontro e em confronto, em perpétua transição, o eterno regresso a casa, quando já de partida, invariavelmente de partida. Para a artista, a realidade africana afirma uma sensibilidade peculiar, supostamente determinada pela experiência intersecional – essa que partilha, de algum modo, com Miriam Makeba (1932–2008) e George Wright (1943–). Pois que a artista evoca o princípio da unidade pan-africana pelo cruzamento da sua história com a da cantora sul-africana e a do evadido luso-americano. Isto significa que opera a partir da informação biográfica – e, em particular, da informação biográfica visual – para a construção de uma imagem identitária da comunidade africana. Pan African Unity Mural toma a sensibilidade intersecional como um denominador comum, o vínculo primordial. Ângela Ferreira convoca, uma vez mais, a sua primeira casa – através de uma sua maquete – e a estrutura piramidal de uma torre matriz – que percorre, como um elemento simbólico de carácter aglutinador, toda a sua produção artística. Há que ter em conta que a casa, o território do eterno regresso, assume um papel elementar na configuração desta narrativa visual: a artista integra também a de Miriam Makeba, na Guiné, e a de George Wright, em Portugal. Tal como no retrato deste, interrompido pela abertura na parede, fixa apenas o contorno. De referir que este traçado revela ainda a cena do sequestro ao avião da Delta, no qual fugira para a Argélia, adiando por muito a sua captura – uma negociação algo humilhante para o FBI, como se constata nesta última edição da Umbigo, com um projeto artístico da mesma autora.

Interessa lembrar que a ideia de um mural unificador para uma imagem identitária de um determinado continente deriva de uma proposta anterior, cujo título se acha agora adaptado. Em 1940, Diego Rivera (1886–1957) apresentara o seu Pan American Unity Mural, dando por concluído o trabalho desenvolvido durante – e já depois – da exposição Art in Action, no âmbito da Golden Gate International Exposition, em São Francisco, na Califórnia. Ângela Ferreira recupera o tom congregador de Diego Rivera, não descurando, de modo algum, a mensagem revolucionária que subjaz a toda a tradição muralista. Pan African Unity Mural constitui uma proposta declaradamente politizada. Se não pela exaltação da força do trabalho ou pela alusão ao triunfo do trabalhador, pela atenção ao papel da mulher neste mesmo contexto.

(Até 8 de setembro, no MAAT)

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos – Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o paradigma da derivação imagética a partir da imagem que deriva no constelar de uma dinâmica para-artística em Portugal (2016 —)».

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