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A vírgula tem regras, mas está sujeita a interpretações subjetivas; tem uma função, mas o seu uso é variável; comporta um tempo, mas esse tempo é inconstante. Antes do mas, coloca-se uma; antes do e raramente, exceto, claro, tratando-se de um grupo móvel ou de sujeitos diferentes.

Na língua inglesa, contudo, existe a célebre Oxford comma, que tem vindo a deixar de ser consensual, empregue apenas por uma classe muito restrita de académicos. Aí, com justificações históricas de gramática, recorre-se mais frequentemente à dita cuja antes do e. Resta ao tradutor dirimir o seu uso entre idiomas.

Temos ainda o ponto e vírgula, cuja aplicação é dúbia e cada vez menos usada.

No que à curadoria diz respeito, o emprego da vírgula constitui uma excelente metáfora para a conceção de uma exposição. Isto porque o trabalho do curador é determinar, justamente, a construção de um texto bem ritmado, articulado, que resolva orações, separe explicações e advérbios, que dê autonomia a ideias, faça transições e conduza uma voz interior, um olhar atento através de letras, vocábulos, palavras, frases, parágrafos, signos e significados. Ou seja, o trabalho de um curador é o de saber empregar vírgulas devidamente, de estruturar um texto.

Mais pertinente se torna esta justaposição de dimensões entre imagens, significados e textos, quando percebemos que, neste contexto, estão em causa diversas coleções de géneses muito diferentes e linhas aquisitivas por vezes diametralmente opostas. Criar uma narrativa coesa, que permita um fluido olhar sobre as obras, é uma tarefa da maior importância para os curadores. Não quer dizer que a vírgula venha a sobrepor-se a outras pontuações. Há espaço para reticências, exclamações ou interrogações retóricas que aguçam a curiosidade e lançam desafios. Mas, e como já foi referido, é este pequeno símbolo gráfico que temos tratado que confere uma cadência, um tempo, um compasso, à exposição e que fomenta a performatividade sincrónica do corpo e do olhar do visitante, do espetador, do sujeito. Ou seja, a menção à vírgula inscreve a exposição num domínio textual imaginário, necessitado de leitura e interpretações.

A exposição A sedução de uma vírgula bem colocada atende precisamente a este exercício ao juntar as coleções privadas de António Cachola, Armando e Maria João Cabral e José Carlos Santana Pinto, num esforço conduzido pelos curadores João Mourão e Luís Silva no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). E se geralmente se associa a vírgula à separação, aqui, a sua aplicação adquire a importância contrária: a de aproximar e propor diálogo entre vários constituintes, neste que é um interessantíssimo (e elegante – também é importante dizê-lo) exercício curatorial.

Numa primeira instância, é impossível dissociar a mostra de uma mirada etnológica ou mesmo etnográfica. As fotografias de Maria Loboda zelam por artefactos antigos: uma mão que cuida de forma terna dois objetos sem sabermos se é uma típica e escrupulosa ação de conservação, se um gesto de amor e adoração, se as duas coisas ao mesmo tempo; uma máscara chora uma lágrima invisível que o dedo humano, coberto com um lenço branco, limpa cuidadamente. No centro da galeria, duas esculturas em azinheira – da dupla Musa Paradisíaca – servem de corpo a duas cabeças, no que parece ser uma reinterpretação da visão antropológica entre vegetal, humano e/ou animal, mas também entre mito e símbolo.

O conceptual e o minimal constituem o segundo momento expositivo com obras de Carl Andre, Lygia Pape ou On Kawara. Procuramos significados, chaves, em palavras, definições, estruturas e desenhos, lemos os títulos na expetativa de um desbloqueamento. Vasos são, na verdade, veículos, urnas para uma última viagem; uma data é um momento precioso na biografia do artista ou na historiografia do mundo. Há qualquer coisa de espacial, também – a tentativa de criar um espaço imaginado dentro do museu.

E o texto continua.

A simetria da escadaria barroca é reafirmada pela obra David.David, de Daniel van Straaten, que contamina a pureza clássica da escultura com um objeto corrente contemporâneo. Ao mesmo tempo, serve de preâmbulo a cenas de quotidiano, do olhar fugaz, de momentos fugidios capturados nas fotografias de Wolfgang Tillmans. A modernidade e a contemporaneidade abriram lugar à imortalização do banal, da beleza nos pequenos gestos de aparência inane. Paralelamente, André Romão interroga a escultura na sua dimensão intemporal, na capacidade de tornar perene sentimentos de poder e identidade.

Segue-se um jogo de formas, de relações entre obras, que subentende uma relação entre coleções.

Depois de tantas vírgulas, vem o ponto final – não conclusivo, todavia, mas certamente sinalizador de uma catarse ou de um pathos que se veio preparando. A Family Finds Entertainment, de Ryan Trecartin, é um exercício extravagante, hipnótico e alucinante. Uma folia de cores vibrantes e sobreposições que aproximam o vídeo de uma experiência quase pictórica e abstrata. É um momento de libertação, de loucura e experimentação, tanto do ponto de vista narrativo – do coming out adolescente – como do ponto de vista construtivo e técnico.

De facto, não há obra final mais adequada para uma exposição tão desafiante e tão diferente do que tem sido praticado no MACE, esperando que este esforço de diálogo entre a coleção residente de António Cachola possa vir a ser concretizado mais vezes com outras coleções privadas portuguesas e estrangeiras.

Até 4 de novembro.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo.

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