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A História contada segundo a ecologia

“A minha consciência está perfeitamente alinhada com o horizonte, ela é feita de petróleo.” Nikolai Nekh

A minha consciência é petróleo – talvez a declaração mais sintética da obra que Nikolai Nekh tem desenvolvido – é a constatação de uma viragem do olhar ontológico sobre o homem. Antes desta afirmação, outra sublinhava igualmente este salto pós-humano: “Sou feito de imagens”. A carne dá lugar ao metal, o sangue a uma seiva oleosa e viscosa, os ossos ao metal, o cérebro aos transístores. A construção do corpo segundo Nekh é uma construção prostética, humanoide, vagamente antropomórfica, nunca totalmente humana – ou, pelo menos, não exatamente como a conhecemos na realidade. Algures entre o digital e o organismo senciente, o corpo constrói-se em adições e subtrações. Não há género, não terá de ter peso, nem altura, nem sequer matéria: é pós-humana. Pode ser, simplesmente, “um fantasma” num hardware estritamente essencial. Não obstante, tem consciência; e se tem consciência, tem inteligência; e se tem inteligência, tem capacidade de perspetivar uma narrativa crítica e histórica da vida no mundo.

É esta a consciência comunicante que Nekh instala em Calcanhar de Aquiles. O horizonte despoleta o contar da História numa viagem axial entre ocidente e oriente, entre a antiguidade clássica grega e a modernidade hiperindustrial. O vídeo é o suporte utilizado para rever os cânones e a construção da história; a estória – cada vez mais esquecida entre os artistas contemporâneos, mas aqui relembrada – é preferida ao texto hermético da academia; a fragmentação da imagem é a relembrança de uma contemporização de vários períodos, cronologias, civilizações, técnicas e expressões. Neste contexto, já não estamos perante uma simples consciência, mas uma superconsciência que se consubstancia em matéria através da arte.

“O governo foi obrigado a reduzir a poluição para manter o mármore do Taj Mahal um pouco mais limpo.” (Idem)

Mas a tónica dessa revisão é outra. Não são tantos as guerras e os encontros diplomáticos que aqui fazem a ação desta estória-história. Nem as igrejas, nem as cortes, nem os governos, nem os reis e políticos. A ação – lembre-se – está à altura de uma simples personagem que vê os longos dias da sua existência ocupados com o trabalho. Não é uma grande narrativa e não é vista segundo o objetivo do poder ou do empoderamento. A tónica, se quisermos, é a da ecologia e dos sistemas que a conformam. Nas palavras da curadora Sandra Vieira Jürgens, a exposição “é […] uma reflexão sobre as dependências económicas e políticas, a relação histórica entre o homem e a natureza, as consequências das possibilidades técnicas sobre os equilíbrios sociais, a sustentabilidade económica e ecológica na evolução da humanidade e a sua importância e significado atuais”. A indústria extratora é frequentemente referida, porque se tornou condição natural assumir a presença do homem no mundo como uma relação parasitária, vampírica. Primeiro a madeira, depois o carvão, as minas, o petróleo. O importante é manter a “chama acesa”, a figuração plena da iluminação e do triunfo sobre a escuridão da natureza.

“O contraposto foi uma catástrofe.” (idem)

A representações do corpo clássico, de acordo com a harmonia do contraposto, libertou um calcanhar e depôs sobre o outro todo o peso da gravidade. Um corte no calcanhar fletido, faz tombar todo um sentimento, uma perceção, uma ideia. Uma pequena incisão é o bastante para que um império sucumba ao marasmo e à perdição. Toda a beleza esconde uma fraqueza; todo o poder, um cavalo de Troia à espreita. Até os regimes totalitários – ou, sobretudo os regimes totalitários. Nem a educação adestrada – controlada e controladora, preventora de desvios – susteve a rebelião. Aliás,

“Já repararam na forma como o Putin mexe o corpo? […] Creio que os treinos do KGB tiveram a sua influência. Desconfio que há uma ligação com a indústria para a qual estou a trabalhar e com o novo sistema pedagógico que está a surgir.” (Idem)

Afinal, a educação sempre foi, do ponto de vista histórico, a bandeira da democracia. Mas que democracia? E que história?

O texto curatorial sublinha esta invulnerabilidade falhada, esta tentativa apolínea de combater o dionisíaco, o que não se controla, a natureza no seu estado primevo. A História é a inscrição de uma magnífica sinusoide, de conquistas e falhanços, de ascensões e quedas, de amplitudes e frequências mais ou menos maiores. Mas a história está sempre fragmentada, inscrita entre a superioridade de uns e a inferioridade de outros; o olhar nem sempre é o mais democrático e a visão esconde artifícios que bloqueiam o dissenso, a crítica e, lá está, a revisão.

Calcanhar de Aquiles – mediante a estética híbrida, fragmentária, transpositiva e recursiva das culturas digitais, de imagens que se sobrepõem umas às outras em camadas de entendimentos vários, uma espécie de assemblage digital – é a constatação do imenso poder da arte contemporânea em investigar a História, em contemplar novos códigos, espalmar (flattening) os grandes momentos da história para depois lhe conferir novas morfologias, sob a pena de se tornar um fóssil. Mas sobretudo, e como já se aflorou, da necessidade de voltar a contar estórias e histórias através da arte, quer do ponto de vista coletivo, quer do individual, do frequentemente esquecido, do simples e trabalhador cidadão.

Com a curadoria de Sandra Vieira Jürgens, Calcanhar de Aquiles, de Nikolai Nekh, pode ser vista até 9 de setembro no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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