Queriam um novo mundo e chamaram-lhe deserto
“A criança, quando criança, fazia perguntas como estas:
Porque é que eu sou eu e não tu?
Por que estou aqui e não ali?
Quando começou o tempo e onde acaba o espaço?
A vida sob o sol não é apenas um sonho?
Não é apenas a aparência de um mundo antes do mundo?”
São palavras de Peter Handk usadas por Wim Wenders em Der Himmel über Berlin (1987) que me vêm à memória.
N’O Novo Mundo d’Os Possessos não se conhecem os limites do tempo e do espaço, mais de dez são as crianças – feitas em laboratório – e as perguntas são algumas.
O tempo é matéria de investigação permanente. Procura-se balizar o tempo histórico para contextualizar o presente, e entender o tempo enquanto matéria que marca o início e o fim das coisas mutáveis e o compasso de ciclos repetidos. No que ao novo diz respeito, este mundo tem muito do antigo: a dicotomia entre o comportamento natural, instintivo e inato e o social, aprendido e formatado; diferença de classes; capitalismo; o eco dos que “comem tudo e não deixam nada”; turismo exacerbado. Mantém-se o egocentrismo e a falta de observação comum do ser humano revelada na consideração de os animais não terem noção do tempo. Mas, pior do que tudo, para os adultos continua a ser “horrível acordar” de manhã. No entanto, apesar de os ponteiros não pararem de rodar no cato do deserto, o que se sente neste espetáculo é a ausência de tempo. Como se estivesse suspenso. Há uma sensação de porvir, talvez desse novo mundo que não chegou ainda.
Quanto ao espaço, foi eleito o deserto. É um lugar árido, sem referências espaciais para conduzir os passos, para além dos astronómicos – uma esfera iluminada que se advinha ser uma estrela. Um enorme nada feito de ausência assimilada, onde a alienação se torna fácil, desenhando aquela impaciência de a quem qualquer coisa faz falta, mas que ainda não sabe o que é.
A definir o lugar entre o tempo – os passados imaginados e os futuros incógnitos – concebidos na mesma linha de prumo, e o não lugar que o deserto acaba por encetar, a linguagem imagina-se hipertextual, a par com o idioma contemporâneo do mundo Ocidental. Nesse sistema necessariamente fugaz e apressado, perdem-se palavras e silêncios.
Quanto às crianças, dizem-se leves, enquanto outros dizem que são loucas. Ambos procuram os pais e dizem querer chegar a casa – persistem as referências ao mundo antigo, de quem não se revela preparado para o novo, mas que está inquieto. Ainda não sabem quais são as perguntas que têm a fazer, mas estão à procura.
“A criança, quando criança,
caminhava de braços caídos,
queria que o ribeiro fosse um rio,
o rio uma torrente
e este charco, o mar”, continua Peter Handk.
No deserto, os ribeiros e os charcos não são comuns. Neste há um oásis, vendavais apressados, e a estrela apaga-se no final. Procuram um novo mundo. Enquanto não sabem o que é, chamaram-lhe deserto, num tempo fora do tempo, “como quem corta caminho para chegar mais cedo, mais longe, mais perto” (João Pedro Mamede).
Assim é o crescimento que requer coragem – necessário à construção do mundo que se quer erguer – e Os Possessos fazem-no no coletivo: formado em 2013 por Catarina Rôlo Salgueiro, João Pedro Mamede e Nuno Gonçalo Rodrigues, O Novo Mundo foi criado a doze mãos (Daniel Gamito Marques, João Pedro Mamede, Leonor Buescu, Miguel Ponte, Nuno Gonçalo Rodrigues e Tiago Lima), para 16 atores (André Pardal, Catarina Rôlo Salgueiro, David Esteves, Eduardo Breda, Filipa Matta, Francis Selleck, Guilherme Moura, Isabel Muñoz Cardoso, Marco Mendonça, Margarida Vila-Nova, Miguel Cunha, Nídia Roque, Nuno Gonçalo Rodrigues, Óscar Silva, Rafael Gomes, Vicente Wallenstein) e um músico (Fernão Biu).
Esteve em cena de 27 a 30 de junho, no grande auditório da Culturgest.