Estudos do Labirinto
Estudos do Labirinto é o que podemos chamar de instalação compósita em quatro pontos. A Casinfância, mais especificamente Cláudia Ramos, curadora do projeto, convidou oito artistas a criar obra para quatro espaços museológicos na zona de Belém-Lisboa, em modo de residência artística, pretendendo que, deste modo, pudesse ser contruída uma relação intrínseca entre “a arte de hoje”, dita contemporânea, e o lugar para o qual foi pensada.
Encontramos no Museu Nacional de Etnologia as intervenções artísticas de Teresa Carepo e de Francisco Tropa; no Jardim Botânico Tropical as de Nuno Vicente e de Armanda Duarte; no Museu da Marinha as de Ana Santos e Belén Uriel; e no Planetário Calouste Gulbenkian as intervenções da dupla de artistas Pedro Paiva e João Maria Gusmão. Desta forma, e em sede de residência artística, era fundamental a confluência do pensamento dos artistas com o lugar que os acolheu: a etnologia, a botânica, a marinha, e a astronomia. Além disso, estes espaços museológicos não permitem neutralidade em matérias expositivas e agora, ao compactuarem com obras de arte contemporânea, possibilitam um olhar diferente sobre si e sobre as obras, e, assim, uma abertura a outras e novas possibilidades. O trabalho em rede que está como base de Estudos do Labirinto desdobra-se também, paralelamente, para fora do museu e dos artistas residentes, com a concretização de conferências por investigadores/ensaístas convidados, um ciclo de filmes e oficinas.
Numa das salas do Museu Nacional de Etnologia estão expostas sete obras S/ título de Teresa Carepo e seis obras intituladas Polícias de Francisco Tropa, as últimas, dispostas em parelha. Nestas “figuras” de Tropa, de configuração antropomórfica, feitas com cerâmica vidrada, madeira e ramos de eucalipto pintados, adivinha-se a contaminação do lugar, contaminação essa que é um dos propósitos do projeto Estudos do Labirinto, mas que também faz parte das preocupações caraterísticas do artista e da própria tradição da escultura: a reflexão sobre o corpo, a natureza, a memória, o tempo, a origem, a morte.
Nas obras de Teresa Carepo observamos vários objetos que, pela sua configuração, nos parecem familiares, caseiros, como panos, uma masseira de madeira, um objeto mesa, uma pá, uma garrafa de vidro. Na parede, uma concha de cobre e ferro contendo água. A posição da concha salvaguarda a água, mas apenas no limite: como está, colocada verticalmente na parede, como que suspensa, a sua concavidade praticamente esvaziada transbordaria com um pouco mais de líquido. No chão, à sua frente, vemos uma placa de parafina, material que vamos encontrando ao longo da instalação, tanto estendida no chão, depois de obedecer à forma sobre a qual foi vertida, como dobrada sobre si mesma, como se de um pano se tratasse. A parafina é um material cálido, quase meigo. Não por ser combustível, nem por perder a sua solidez e palidez próprias, tornando-se líquido transparente quando subjugada ao calor, mas por parecer, mesmo no seu estado esfriado, consolidado, memorar uma temperatura amena, quase corporal, próxima da pele. Ao fundo da sala, uma escultura na parede onde vemos, disposta sobre madeira, uma gaze de aspeto rasgado, manuseada, deixada à beira. Há nestas esculturas de Teresa Carepo qualquer coisa de elementar, até vital. Não só pelos objetos ou materiais de que as obras são feitas, nem pelas associações simbólicas ou antropológicas que lhes podemos fazer, mas pelos verbos que estas obras ‘sussurram’.
Vincular verbos, isto é, palavras, ao mundo das imagens pode parecer um ato transgressor, uma imiscuição de domínios. Neste caso, vai mesmo em sentido oposto aos títulos das obras, que negam por completo o papel da palavra (S/título). Mas, por vezes, notamos que, quando algumas obras nos ‘revolvem’ trazem ao de cima palavras, pois provocam ou sugerem uma ação, um estado, uma ocorrência, um acontecimento. Não se trata de fazer converter as imagens em palavras, essa será sempre uma tarefa falhada, uma impossibilidade certa, mesmo que, por vezes, existam palavras bastante capazes, palavras que podem sugerir a condição subtil de uma imagem, a sua qualidade verbal antes do verbo nomeado. Pois a linguagem visual ou plástica e, neste caso em concreto, a escultura, antes de ser forma é inteligência, ou ideia (se nos situarmos no pensamento de que a arte opera através de dois planos distintos, mas complementares: um mais subtil e outro mais concreto). A forma torna-se forma a partir do momento em que a ideia, ou o pensamento, se materializa, se concretiza no ‘mundo sensível’ (já “no princípio era o Verbo (lógos)” e o Verbo fez-se carne).
Não me refiro a palavras nem a verbos estanques, nem aferidos à posteriori. Nem, por exemplo, ao sentido da lista de verbos transitivos de Richard Serra, onde o escultor especifica um conjunto de ações particulares a serem desempenhadas sobre um material (Verb List Compilation: Actions to Relate to Oneself, 1967-1968). Refiro-me a palavras que nomeiam ações, ou estados, que se tornam presentes ao mesmo tempo que as obras estão a ser vistas. Se o verbo presume uma ação, isto é, se é um acontecimento no tempo, e estes objetos apresentam-se parados no espaço, imóveis por debaixo de focos luminosos que os ‘surpreendem’, as ações prenunciam-se, ocorrem através da lembrança do acontecimento que se fez palavra, que se fez verbo. Na sua quietude e mutismo aparentes, estas esculturas surgem-nos pela calada, fazem acontecer, provocando um movimento para além de si mesmas. Desta forma, e mesmo que num sentido prosaico, é como se fossemos transportados através do movimento contrário ao da concreção da forma, ou seja, num movimento de regresso a uma dimensão mais subtil.
Reparar, ungir, ligar, nutrir, sarar são os verbos que estas esculturas de Teresa Carepo me sugerem (parecidos, por vezes iguais, aos verbos de algumas obras de Joseph Beuys). Contudo, elas não mos sugerem de forma expressa, pronta, mas quase que em voz de apelo: são ações a convocar, a tornar presentes.
No Jardim Botânico Tropical está uma obra de Armanda Duarte, onde, para a encontrar, temos que elevar o olhar, temos de descobri-la, tal se imiscua no lugar. Como está descrito na ficha técnica da obra, residência (2018) é feita de ar, sombra, madeira de bétula, uma mosca e um pequeno pássaro. A intervenção de Nuno Vicente consiste num dispositivo escultórico chamado Escultura para o fim do verão (2018), que está “em mediação com as águas pluviais de fim de verão. Para a celebração do fim do período seco e do odor à terra húmida” e noutra obra, Estudos para o jardim (2018), onde vemos imagens de maquetes e de esculturas pensadas para intervencionar o Jardim Botânico Tropical de Lisboa. Em Escultura para o fim do verão, Nuno Vicente sublinha o seu interesse pelos fenómenos naturais e pela poética do tempo, num lugar onde a paisagem é ficcionada, mas onde as manifestações e ritmos da natureza se sentem igualmente.
Por seu lado, Ana Santos e Belén Uriel foram as artistas convidadas a integrar a residência artística no Museu da Marinha. Observamos nas obras de Belén Uriel a utilização de formas em vidro, de certo modo familiares, dispostas em estruturas de ferro coloridas. A cor é um elemento essencial nestas esculturas, e está também presente, apesar de numa forma mais discreta, nas três esculturas de Ana Santos. As obras de Ana Santos revelam a prática diária da artista no que diz respeito ao confronto entre materiais, às suas possibilidades e ao seu comportamento físico, e o modo como essas qualidades intrínsecas dos materiais se pronunciam no objeto artístico. Nelas observamos a coexistência de tubos de aço inox com fios de polyester. A resistência e a durabilidade associada ao aço inox, o seu brilho industrial ‘polido’ até à reflexão, contrastam com os fios coloridos (cada escultura tem fios de cores diferentes). Sabemo-los leves e maleáveis, sabemos que não mantêm uma forma, mas, aqui, em conjunto, esses fios caem e dispõem-se verticalmente à imagem dos tubos metálicos, em aparente estabilidade, não fosse um sopro violento o apenas necessário para desvirtuar aquilo que juntos conseguiram. Estas esculturas parecem encontrar-se numa zona de tensão das dicotomias, entre a durabilidade e a fragilidade, a densidade e a imaterialidade, o movimento e a imobilidade, evidenciando também a relação corporal entre o espectador e a obra.
Na cúpula do Planetário Calouste Gulbenkian estão projetadas seis obras de João Maria Gusmão e Pedro Paiva. O pensamento da dupla de artistas, através de uma linguagem pautada de um certo humor, entra, portanto, em diálogo com a astronomia e o universo, pondo em paralelo o próprio fascínio dos artistas pelo desconhecido com o lugar onde a vastidão impenetrável do universo é homenageada.
Estudos do Labirinto (o nome vem do livro de Károly Kerényi) é uma instalação que não nos propõe uma saída, mas a realização de uma jornada à procura de um enigma que não tem solução.
Para ver até 16 de setembro.