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She looks into me (and I look into myself)

A existência no feminino é, desde tenra idade, muito vivida através do corpo. Acho que o corpo nos entra pela vida mais cedo do que aos homens e com uma força diferente – seja pela forma como o vemos e interagimos com ele, seja pelos (pre)conceitos que os outros lhe querem colar. Ainda assim, continua a ser uma entidade escorregadia. Quando atingimos um patamar de aceitação e conhecimento, ele muda. Ou muda o nosso olhar e expectativas sobre ele. Talvez este jogo de toca-e-foge abrande com o passar dos anos e consigamos habitar durante mais tempo a nossa pele no presente – a pele certa no momento certo, tirando usufruto dela da melhor maneira. No entanto, a perceção mais constante é que este invólucro vai envelhecendo sem nunca realmente nos termos apropriado dele na sua máxima força. Andamos sempre a tentar agarrar o corpo e ele sempre a fugir de nós. Ou, talvez, a mostrar-nos o caminho certo.

Apesar de esquiva, a minha pele tem-se revelado um lugar cada vez mais confortável. O confronto com a própria imagem é uma das ferramentas que pode ser usada para desbravar este caminho. Expormo-nos em frente a uma câmara é uma forma de estar mais consciente dos contornos do nosso corpo. É aprender a reconhecer forças e a admitir estranhezas. Como no amor, é um jogo que muda consoante o parceiro – neste caso, o fotógrafo. Mas é também um embate pessoal com aquele objeto chamado câmara, estranho e invasivo, que se impõe à nossa frente sem ter pupila para nos devolver o olhar. O corpo revela-se precisamente nesta sala escura algures entre a Máquina e o Homem, num lugar que nos obriga a ver(-nos) de outra forma.

É como numa relação a dois, onde existe sempre um terceiro elemento: a dinâmica com o nosso próprio corpo. O olhar do outro pode mudar tudo, apaziguar, nutrir, mas há sempre instantes em que o diálogo é só nosso. É também assim em frente a uma câmara, num processo de reconhecimento, construção e (des)construção – being, becoming, unbecoming. A fotografia enquanto objeto é a cristalização desse momento e o ponto de partida para uma viagem continuamente rica em revelações sobre a nossa identidade.

De alguma forma, é esse processo que serve como base ao novo livro de Nuno Moreira, She Looks into Me. Através de uma dança entre as sombras e o corpo, é feita uma exploração em três capítulos (Being, Becoming, Unbecoming) daquele que é o mistério maior da identidade individual e coletiva – os ciclos da vida e da morte. Na simplificação das formas do corpo e nas nuances dos gestos e das sombras estão contidos aspetos simbólicos representativos da maneira como nos relacionamos com o outro.

She Looks into Me é uma série fotográfica concebida à semelhança do teatro. O título deriva de um poema do surrealista Paul Éulard, poema esse que tem também honras de abertura do livro, sugerindo à partida o carácter imersivo das fotografias.

Este é o terceiro foto-livro de Nuno Moreira. Precede Zona (2015) no qual o fotógrafo contou com a colaboração do escritor José Luís Peixoto. Neste novo trabalho, o texto fica a cargo do letrista/poeta Adolfo Luxúria Canibal, que através de palavras-chave alude ao universo íntimo das fotos contidas no livro.

A edição limitada a 200 exemplares pode ser adquirida no site do fotógrafo em: nmphotos.org ou na Livraria do Museu Berardo, Almedina (Gulbenkian), ou Livraria Serralves.

Colaboradora da Umbigo desde 2000 e troca o passo, a relação tem sobrevivido a várias ausências e atrasos. É formada em Design de Moda, mas as imagens só (lhe) fazem sentido se forem cosidas com palavras. Faz produção para não enferrujar a faceta de control freak, dança como forma de respiração e vê filmes de terror para nunca perder de vista os seus demónios. Sempre que lhe pedem uma biografia, diz uns quantos palavrões e depois lembra-se deste poema do Al Berto, sem nunca ter a certeza se realmente o põe em prática ou se é um eterno objectivo de vida: "mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo"

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