Cores e sabão
Guy entra na fábrica de lanifícios. Saíra do Colégio de São Sebastião, onde lhe tinham mostrado os carolos vermelhos, e estava decidido a encontrar o tom certo. Tinha vindo à procura do tintureiro; chama por António Espiga – queria saber da última partida de lã já terminada.
– Traz-me os vermelhos!
António sentiu um calafrio, porque era do Benfica. Era um dos orgulhosos encarnados, com estádio novo há já um ano… Mas na fábrica havia um ou dois vermelhos, ou seja, do partido. Nos tempos que corriam, no Alentejo, não se brincava com as palavras. Para aliviar dúvidas, ensaiou:
– Estamos a falar dos vermelhos tipo cochonilha a que chamámos na nova síntese o carmim? Ou aqueles encarnados cor de sangue?
Guy, que não era fino só de nome. Percebeu o embaraço e subtilmente pediu o 2456. Não há nada como a precisão de um número para definir os lotes de lã e assim evitar nomes poéticos, ou afinidades e preocupações sociais.
O tintureiro voltava agora com as amostras e as provas de esforço e outros testes de qualidade.
Aproveitara para trazer uns azuis e alguns amarelos. Assim como assim, queria mostrar o trabalho do seu protegido, a quem ensinava tudo o que sabia. Na verdade, com o aumento de trabalho, desde da saída do outro fundador, Manuel Celestino, já ia para um ano, a Tapetes de Portalegre Lda., estava a precisar de um reforço na tinturaria. Já se falava, pela oficina, de um espanhol… Herrera, ou lá o que era?
– António! Retificaram o sabão? Passa na Ensimagem e certifica-te que reduziram a soda cáustica. Ainda ontem a minha mulher chamou a atenção!
O tintureiro acenou com a cabeça, enquanto deixava os pedidos na mesa de trabalho.
Tocava o sinal do meio-dia e a fábrica ia fazer uma pausa. O empresário vestiu o sobretudo e preparou-se para ir a casa. Não sem antes verificar se tinha no bolso a carta do francês. Sorriu para si mesmo com a ideia da surpresa que ia fazer ao almoço.
Na calma do fim da manhã, ao som do pêndulo do relógio de parede, a mesa de toalha branca, imaculada, ostentava para cada lugar o prato principal, o prato de sopa, os talheres alinhados e o guardanapo com a argola de cada um. Mas havia um ritual que se passava antes de todos se sentarem. Diariamente vinha da fábrica um cadinho branco, com a prova de sabão. Mercedes, parava antes de entrar na sala, cheirava, experimentava a consistência, olhava a cor… e decidia o que era preciso acrescentar ou retirar.
– Então o que é o almoço hoje? Atirou Guy, jovial e nitidamente com apetite.
– Estou contente!
– O quê? Já sabes da viagem?
– Não! Porque retificaram o sabão! Hoje está perfeito! Respondeu orgulhosa, a experiente técnica.
– Então, Senhora Dona Mercedes Fino, ontem não me tinha chamado à atenção? Sorriu maroto e abriu o guardanapo. Todos os dias a lã era lavada com esse sabão, aquecido com lenha da serra e usando o azeite da região. Que triângulo! Água, lenha e azeite… mais uma vez a serra fornecia tudo. As caldeiras terminavam o dia com cores e cores. As cores que vinham do tempo de Francisco Fino, dos lanifícios de pura lã, quando ainda era cardada e penteada na própria fábrica. Mas já com as mais modernas sínteses do pós guerra.
Guy, aliviado por saber que o sabão estava em ordem, passou à novidade do dia e mostrou a carta.
Mercedes sorriu e ao mesmo tempo assaltou-lhe a curiosidade:
– Viagem? Qual viagem?
– Está confirmada a viagem! O francês recebe-nos no castelo dele e propõe que seja em dezembro. É um bocado frio, mas se organizarmos bem as coisas, estamos de volta antes do Natal!
– Vamos a França? É o Jean Lurçat, não é? E como se chama o castelo?
– Saint-Céré! E quero começar a pensar nalgumas peças para levar. Gostava de organizar uma exposição em Paris. Posso levar o Camarinha e o João Tavares. A propósito, recuperámos os vermelhos das flores e do pássaro da Diana.
E começando a comer a sopa, ainda disse entusiasmado:
– E hoje vi uns amarelos e azuis excelentes! Depois mando-te as amostras do Espiga.