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Largo Residências. Como equilibrar o cérebro e o coração numa folha de excel

As Largo Residências assentaram arraiais no Largo do Intendente em 2011. A 1 de Julho desse ano, ainda com obras à porta, ocuparam a antiga Pensão Pereira. Não traziam um plano concreto, mas sim uma ideia sentida no corpo do que poderia ser o seu papel naquela zona. Foi um projeto que nasceu de uma necessidade económica, mas que se revelou um agente de mediação social importante no processo (em curso) de gentrificação do Intendente.

Enquanto cara das Largo Residências, Marta Silva incorpora esta mediação. É, simultaneamente, uma figura conhecida e acarinhada por todos no bairro – moradores, comerciantes, associações culturais e recreativas – um agente de ligação entre quem está e quem chega, e uma voz ativa na ligação ao poder político local. O seu discurso é sempre feito na primeira pessoa do plural, porque o trabalho da cooperativa é feito por pessoas e para pessoas.

Embora se festejem vitórias todo o ano, o festival Bairro Intendente em Festa é a celebração maior desse trabalho conjunto para manter o Intendente a uma escala humana. Embora as Largo sejam a entidade promotora, a programação é feita em conjunto com todos os cafés, lojas e associações do Intendente, e é um reflexo das muitas culturas que ali habitam. No ano passado, o festival alargou a sua ação e introduziu uma série de debates sobre o que é (sobre)viver no Intendente no presente, apropriadamente intitulados AGORA. Em sintonia com a postura inclusiva do Bairro Intendente em Festa, todos foram convidados a participar e todos tiveram direito a falar: moradores, investidores, arquitetos, jornalistas. Este ano, a versão 2.0 destas conversas irá focar aquele lugar difícil, mas que é imperativo agarrar, entre a memória e a projeção.

De certa forma, as Largo Residências foram crescendo a par e passo com o Intendente, a meio caminho entre as necessidades internas e as externas. O núcleo duro da equipa vinha de alguma forma (professores, frequentadores, etc.) da associação SOU que existia naquele território – ou melhor, um pouco mais acima nos Anjos, que ali uma rua pode fazer diferença – desde 2004. Depois de um período de crescimento com um grande envolvimento da população local, o SOU começou a sentir os efeitos da crise em 2009/2010. Iniciaram então uma busca por financiamentos públicos do município e a partir dai o processo foi sendo conduzido por uma série de peças que encaixaram umas nas outras e no sítio certo.

As especificações do programa BIP/ZIP visavam projetos com uma componente de reabilitação urbana e de desenvolvimento da comunidade, o que ia de encontro à ideia embrionária da equipa. Embora não soubesse definir o projeto de fio a pavio, Marta Silva tinha o conhecimento de uma matéria humana que (na altura) outros olhos não viam e também a convicção de que “o prazer vem pelo encontro com as pessoas e isso há de gerar qualquer coisa de interessante”.

O cruzamento com o festival Todos levou a que olhassem com mais atenção para o eixo Martim Moniz/Intendente e a notícia de que o gabinete do então Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, se iria mudar para aquela zona, ajudou a definir um contexto político onde essa ideia podia dar frutos. “Sabíamos que não queríamos trabalhar por públicos alvos, nichos e caixinhas, sabíamos que queríamos trabalhar arte e integração social e tentar criar uma ligação a este património humano para que não se perdesse. Queríamos trazer pessoas novas para aqui para passar a mensagem de que a segurança vem pela ocupação humana e não pela polícia”, explica Marta Silva. “O discurso foi-se fazendo no decurso da ação, enquanto o território se foi infiltrando dentro do nosso corpo. Foi um projeto que começou com intuição e coração, mas teve muitas cambalhotas. Se fosse posto no papel e feito um estudo de viabilidade… não se fazia. Só funcionou graças à loucura de alguns de nós e também porque temos objetivos mais territoriais e menos capitalistas”, conclui.

O primeiro ano das Largo Residências foi passado mais a conhecer o exterior do que o interior, estabelecendo ligações com as pessoas e definindo parcerias locais. Em paralelo, apesar dos objetivos maiores serem outros, era preciso perceber como tornar o projeto viável economicamente. Ou seja, era preciso aliar a ação cultural a um modelo de negócio.

As obras no edifício demoraram 2 anos e meio a ser concluídas, estabelecendo as várias vertentes da cooperativa: parte do prédio está reservado para residências artísticas e para o quartel-general da equipa, o restante é ocupado pelo hostel, as suites e o café. Seria de esperar que este último fosse, naturalmente, a principal fonte de rendimento, mas a sua existência deve-se mais ao potencial social do que ao financeiro. “Há a área da cultura, há o negócio, e no meio disto tudo há uma coisa transversal e que passa por uma atitude que é a mediação individual. Uma área que se cruza com todas as outras e que é também uma área por si. É a relação que estabeleces com as pessoas que se cruzam com os projetos ou com o bairro. O café funciona muito como polo social, é uma porta aberta, uma casa com preços acessíveis. Há mesas que são centros de dia, onde alguns vizinhos passam a tarde e só bebem um café”, explica Marta. “Estamos sempre a ajustar objetivos, a conciliar o cérebro com o coração, o que não é fácil de fazer num Excel”.

A Câmara revelou-se, desde o início, um parceiro estratégico importante, canalizando para as Largo alguns dos projetos que existem hoje em dia. A presença ativa de Marta Silva no então GABIP da Mouraria (Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária) foi essencial para fazer a ponte entre o poder político e os comerciantes e agentes culturais que estavam a ocupar a zona.

As obras no Largo do Intendente ficaram concluídas em 2012 e, por sugestão de António Costa, o novo espaço foi inaugurado de forma “caseira”: uma sardinhada só com vizinhos, com mesas de plástico e sem flashes. No entanto, era também importante começar a mostrar à cidade que esta zona estava renovada. É neste contexto que surge o primeiro festival Bairro Intendente em Festa, na altura chamado Renasce um Largo para a Cidade, com uma programação pensada a meias entre a Câmara e o coletivo de entidades do Intendente. Em 2013, o evento repete-se e chama-se Largos da Mouraria, comemorando o fim de mais obras até ao Largo de São Cristovão.

Em 2014, é anunciada a saída do gabinete de António Costa do Intendente e com isso surgem inúmeras questões aos moradores e entidades do bairro, nomeadamente em relação ao futuro do festival. Conseguiram reivindicar a organização para o lado dos habitantes do Intendente, mantendo o apoio da Câmara, nomeadamente na produção de materiais gráficos que ajudaram a construir a identidade do evento. Com a nova Junta de Freguesia de Arroios e o novo executivo, liderado por Margarida Martins, veio outro apoio logístico e estratégico importante.

O GABIP manteve-se como entidade gestora do festival durante 2 anos, fazendo a transição do evento do governo para o território. Seguiram-se mais 2 anos com a EGEAC a assumir parte da organização, até passar a parceiro em 2017. O coletivo de entidades do Intendente é, neste momento, o responsável pelo festival.

Em 2017, o Bairro Intendente em Festa teve a necessidade de ser também um local de assembleia, para além de um palco para música, teatro, performances e workshops para toda a família. Tal como as restantes atividades, também os debates AGORA – divididos nos temas Habitação, Ocupação e Associativismo – se realizaram na rua. “O ano passado foi um ano em que parte do património do estado passou para o privado, foi um momento de grandes revelações sobre o futuro da zona e já se “cheirava” o que vai ser daqui a 3 anos. Este ano, sentimos que devemos continuar a falar sobre estes temas, mas de outra forma. Patrimónios culturais. O diálogo entre a memória e a projeção. Como é que isto era, as pessoas, as histórias, as casas, as fotografias. Também vai haver muita coisa dedicada ao que isto [Intendente] ainda é, as culturas, a emigração, e também será um espaço dedicado ao que isto vai ser. Sustentabilidade. Ecológica, económica, social. Como é que nos organizamos para resistir a todas estas mudanças?”, explica Marta Silva.

Se for necessário tornar clara a importância da memória, realçamos um dos projetos submetidos às Largo por uma das entidades parceiras, As Oficinas. Se fizermos uma pesquisa no Google por Intendente, tudo o que é passado quase não aparece. Apenas o Intendente da gentrificação. A proposta d’ As Oficinas é fazer um trabalho de invasão da Wikipédia para deixar registado o que foi e o que é esta zona durante este processo de mudança.

Também dentro da mesma lógica de registo, foram feitos 5 documentários sonoros sobre a paisagem humana do Intendente que irão ser emitidos numa rádio que, este ano, estará integrada no festival. Está previsto haver música, notícias nas várias línguas representativas das comunidades, cobertura dos debates, etc.

Em cima da mesa está também a promessa de redigir um documento com as conclusões dos debates do ano passado e deste ano. O objetivo é “deixar obra feita” e contribuir para que estes processos não sejam esquecidos mais à frente. Só assim é possível aprender com eles e aplicar esse conhecimento na tentativa de não repetir os mesmos erros.

O Bairro Intendente em Festa decorre de 5 a 22 de julho no Largo do Intendente. São 3 fins-de-semana, de quinta a domingo. Os primeiros nomes do cartaz serão anunciados em breve.

Colaboradora da Umbigo desde 2000 e troca o passo, a relação tem sobrevivido a várias ausências e atrasos. É formada em Design de Moda, mas as imagens só (lhe) fazem sentido se forem cosidas com palavras. Faz produção para não enferrujar a faceta de control freak, dança como forma de respiração e vê filmes de terror para nunca perder de vista os seus demónios. Sempre que lhe pedem uma biografia, diz uns quantos palavrões e depois lembra-se deste poema do Al Berto, sem nunca ter a certeza se realmente o põe em prática ou se é um eterno objectivo de vida: "mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo"

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