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Encontra-me, Mato-te – Sara Bichão no Espaço Projeto do Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna

Invertamos o percurso. Comecemos pelo fim. Comecemos, aliás, pela última obra da exposição. Pois que o fim está por toda a parte, do primeiro ao oitavo momento deste percurso – não propriamente a consumação, mas antes a iminência. Volta (2018), no teto do átrio, delimita o campo de ação e assinala o ponto de retorno. Uma luz distinta, supostamente lenitiva – a que lhe indica o trajeto de volta à terra, quando já avista a terra. Por essa altura, depois de um encontro epifânico com a natureza e com o próprio corpo, o regresso a si, o regresso ao chão. De facto, o corpo precisa de chão, existe em busca da gravidade. Tal evidência, agora mais evidente do que nunca, conduz o pensamento e a mão da artista – a protagonista da história, vivida ou ficcionada, a partir da qual se desenha a exposição.

Encontra-me, Mato-te explora a dimensão catártica, terapêutica ou libertadora da prática artística – na linha de Chama, no Atelier-Museu Júlio Pomar, então partilhado com Júlio Pomar e Rita Ferreira. Estela (2018), uma estrutura instalada no teto do pequeno auditório, remete justamente para essa vertente física, manual e até visceral da criação artística: no tecido que envolve a estrutura estelar de madeira, a artista cose a experiência do trauma, o percurso da revelação – não apenas a distância efetivamente percorrida, mas ainda a que ficou por percorrer. Sara Bichão cose o que resta do tecido laranja da avó: depois desta exposição, já nada lhe sobra dessa recordação. Se não nesta, o último pedaço sobrevive numa outra obra da mesma constelação. Grave (2017) incorpora também o dito tecido, traduzindo exemplarmente a urgência emocional e afetiva desta objetualidade: além do tecido, o caroço de pêssego que alguém próximo terá comido, essa familiaridade reacendida a cada ponto, reafirmada pela agulha, de fora para dentro, de dentro para fora, a linha que atravessa, que extravasa – ou a fome, sempre a fome de afeto.

Uma objetualidade decerto escultórica, mas fundamentalmente pictórica. Importa lembrar, a propósito, que Sara Bichão é licenciada e mestre em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. De salientar o à-vontade com a paleta, o domínio desse segundo idioma, o pensamento cromático, o mais audaz cromatismo. Ora, «[…] porque eu sou de Pintura.».

Acontece que, neste caso, a cor é meramente sinalética: excetuando o azul e o vermelho da iluminação, essa diferença de temperatura deveras sugestiva, a cor está praticamente ausente da exposição. Encontra-me, Mato-te propõe uma nova picturalidade, que compreende uma nova performatividade, no sentido em que o corpo se constitui como o ponto de partida de toda e qualquer operação. De acordo com a artista, «[…] a consciência do corpo tem sido crescente, […] ainda mais depois desta aventura.».

Sara Bichão opera agora no abismo da sua própria finitude, mais consciente de si, em direção ao centro – e tudo porque não passou do centro, da cratera e do mundo, quando atravessava a nado um lago vulcânico na zona montanhosa de Auvergne, em França, perto de Clermont-Ferrand, que visitava por ocasião de uma residência artística. Retomemos Agosto, 2017 (2017).

X (2018), um seu fantasma, evoca precisamente esse intervalo, o momento da incerteza, a fronteira entre o que aconteceu e o que podia ter acontecido. Isto é dizer, de outro modo, a iminência do fim – uma visão da morte, da sua própria morte. Vertigem (2018), de repente: uma profundidade que desconhece, mas que sente, naquele instante, como a derradeira. Segundo nos diz, experimenta uma variação magnética que lhe é estranha, que a puxa para baixo, para dentro, que a suga como se de uma pequena partícula se tratasse, absolutamente impotente perante a força maior da natureza. Direção (2018), a escultura que se estende longitudinalmente pela sala de exposição, expressa essa força invisível, então tida como inescapável: sobre a faixa de tecido que se fixa ao teto numa e noutra extremidade, o peso daquele corpo, mesmo ao centro, em trajetória descendente, engolido pelo vazio.

Se visto da margem, ainda de fora, tudo é possível. Afinal, qualquer decisão se afigura acertada quando tomada em terra firme, sob o nosso elemento. Eis que a distância efetivamente percorrida se revela, de forma inimaginável, muito além da distância previamente calculada: à tona da água, subjugada pela força centrípeta da cratera, desorientada, descoordenada, desligada de si, perde a noção do espaço e do tempo, quase submerge. Porém, a dada altura, não sabe bem quando, descobre o ponto de retorno, uma árvore à beira do lago, que a espera desde sempre. Porto Seguro (2018), enfim: um anel incrustado que nem uma concha, a concha, uma bola de algodão, a pedra e o prego, um pedaço de pão, o batom do cieiro, o café, a casca, o cato – tudo o que lhe é chão.

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos - Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos - Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o sistema de produção, mediação e receção da obra derivada na cena artística emergente em contexto português (2015-2025)» vem proceder ao trabalho iniciado em «Do gesto transgressor sob a lógica estetizante da cena pós-contemporânea: Uma abordagem à prática artística emergente em contexto português (2016-2019)» e visa perscrutar a ascendência de uma vocação derivativa sobre o gesto criador, progressivamente alimentada pela mais jovem geração a operar nesse recorte espaciotemporal.

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