O mosaico da arte
A contemporaneidade é um mosaico atemporal e warburguiano. Pessoas, pensamentos, ideias, movimentos, expressões e manifestos coexistem numa composição celular que pode ou não ter forma, pode ou não fazer nexo. Não há linearidade. Não há tempo. Ou antes, é tudo em todos os tempos, em todos os espaços. O ciberpunk com desejos medievais, o escultor de plexiglass e modelos primitivos.
Julian Rosefeldt fez ver esta contemporaneidade no filme Manifesto (2015), “um manifesto de manifestos”, como o próprio indica, que junta alguns dos mais determinantes textos autorais do mundo da arte, do cinema, da política e da arquitetura.
Inicialmente desenvolvido como uma instalação de 13 vídeos reproduzidos em simultâneo, todos protagonizados por Cate Blanchett, a obra chega agora aos cinemas em formato de tela única. E se tal parece redutor ao forçar um exercício instalatório a uma experiência plana, o certo é que resulta e, em 90 minutos, temos acesso a um dos mais impressionantes projetos de cinema experimental. Rosefeldt espalma, flattens, a massa do tempo da arte numa única superfície, num único corpo que se consubstancia em vozes dispersas, gestos vários, pensamentos divergentes. Afinal, a modernidade e a contemporaneidade são isso mesmo: a composição plana de um mosaico total – a cena final, 13 egos, 13 personagens a falarem ao mesmo tempo.
Ao mesmo tempo, este é um ensaio crítico lúcido sobre o manifesto enquanto peça histórica e artefacto artístico e sobre os contornos psicológicos, sociológicos, – simplifiquemos – políticos, dos mesmos. Desde o primeiro Manifesto comunista (1848), de Karl Marx, não podemos deixar de perceber a perspetiva vagamente egocêntrica, por vezes tirânica e totalizante, dos manifestos – de uma voz que quer superar as outras, silenciá-las, e assumir-se como o clamor da razão superior. Até o manifesto de Claes Oldenburg, I am for na art… (1961), não dispensa o eu, embora acabe por reduzi-lo à sua insignificância. E o de Yvonne Rainer, No manifesto (1965), que por mais que recuse, não deixa de o ser. O sem-abrigo que brada pelos dogmas situacionista prega ao vento, entre ruinas, para uma cidade que opera para lá de qualquer previsão, contextualização, situação. Os manifestos, por vezes, dizem muito mais sobre um indivíduo do que um coletivo.
Depois de anos a emprestar o corpo a filmes de Hollywood e à Companhia de Teatro de Sidney, Cate Blanchett ensaia agora um registo completamente diferente, como se disse, experimental, que expande o seu repertório e a sinaliza como uma das mais ousadas e polimórficas atrizes mundiais. Blanchett segura o espectador entre o simples prazer de ver e a inteligência e argúcia necessárias para o compreender. Uma atuação cerebral que nos acompanha de metamorfose em metamorfose, de persona em persona, de manifesto em manifesto. Na Pop Art é uma dona de casa de subúrbio americano; no Dadaísmo é uma viúva-matriarca em começo de luto, no funeral do defunto marido; em Fluxus, uma instrutora de dança de leste, precisa, atenta, exigente, que conduz uma coreografia bizarra; no Construtivismo, uma cientista que se encerra numa câmara anecoica; no Criacionismo, uma punk bêbeda escaldada com a vida… Esta é uma performance-escola, uma lição imprescindível e a evidenciação do caráter híbrido e fluido (gender fluid ou até mesmo genderless, sem género) das grandes atuações e dos grandes artistas.
Desde a faísca inspiradora, catalisadora de mudança, até ao esgotamento ideológico, Manifesto documenta a vida e morte de cada uma destas vontades, enquanto assinala o fim de todas para a posteridade. O idealismo simplista dá lugar à impossibilidade do real. De há um tempo para cá, todas as vozes passaram a coexistir nos miríficos canais mediáticos e sociais da galopante modernidade. Uma selfie é um manifesto e vice-versa. Ou seja, nada. “Nothing is original. You can steal from anywhere”.