Figuras de desejo, ou toda uma cultura numa exposição
A década de 70 foi prolífera em filmes pornográficos. Até aos primeiros inícios de 80, várias foram as películas que ficaram associadas à dita pornografia gay clássica. A indústria, liberalizada, produzia títulos após títulos, mas ainda dentro de parâmetros mínimos que respeitavam a cenografia, o argumento, a representação e a fotografia. Pornografia hétero e homo, certamente não em igual número e saída, era vendida em sexshops, videoclubes e mostrada – espante-se – em cinemas próprios para o efeito. Na escuridão imensa da sala, nos ténues feixes luminosos de luz fílmica, uma salutar depravação de encontros fortuitos, sexo entre cadeiras e olhares entrecruzados de desafio e sedução.
A pornografia gay teve os seus momentos de ouro então. O absoluto desejo da carne entregava-se sofregamente à liberdade, aos corpos musculados e hirsutos. Bareback. Sexo sem proteção. Contacto direto de órgãos e fluidos, sexo e sangue, prazer e dor, antes de a Grande Ceifa chegar e lançar a prática para o abismo da clandestinidade e da doença. Ainda não havia o medo, ainda não havia o clamor médico pela a abstinência. As produções desconheciam o vírus, a comunidade científica também, os atores também.
Os modelos (os corpos) tingiam o cabelo de amarelo ou louro falso. Uma cor oxigenada, de raízes negras profundas. Brilhavam ao sol, dourados, com as linhas de bronzeado bem definidas. Com alguma imaginação olfativa, podíamos cheirar – entre outros aromas bem mais escatológicos – um óleo de coco, um protetor solar perfumado misturado com o cloro das múltiplas cenas de piscinas, típicas de então, que David Hockney imortalizou na pintura.
Nessa época havia enredo. Simples, sofrível, mas o suficiente para a imersão e a criação de uma atmosfera vagamente verdadeira. Joe Gage realizou uma das pornografias gay que ficariam na memória de muitos pornógrafos: L.A. Tool & Die (1979). (Memória é um conceito estranho, em pornografia. A gratificação instantânea é avessa à rememoração. O orgasmo masculino é, para raiva de muitas feministas – e com razão –, a metáfora perfeita da sociedade e tempo contemporâneos. Rápidos, egoístas, fugazes. Não há grandes estudos sobre pornografia em geral. A pornografia gay ainda reúne alguns adeptos avulso, dispersos pela Internet, em blogues pouco completos e sobra dedos de uma mão para livros editados com rigor sobre o assunto.) Gage confronta muitas vezes alguns estereótipos: homens robustos, musculados, de bigode negro, com rapazes de feições franzinas, louros. No filme citado, um jovem encontra o amor num camionista que percorre os vários estados americanos, um título que pertence a uma trilogia de filmes cujos protagonistas principais são todos camionistas. A cena final é um jorro de água a ser expelido pelo solo com a imagem dos dois amantes em jubilosa cumplicidade. A música eletrónica, minimal, acompanha as cenas de sexo, as vozes fogem da imagem saturada, dessincronizadas. Nada é muito sério, mas tudo parece verdadeiro.
Outros estúdios produziam outro tipo de estórias. Cadinot fazia produções europeias com jovens em sexo inter-racial. A diversidade étnica francesa era visível. Jack Deveau misturava a alta sociedade com a classe operária; uma versão homossexual de A Streetcar Named Desire. Peter de Rome e Roger Earl recorriam à iconologia e religião para os seus argumentos. Entretanto, nomes de atores iam ficando na memória de muitos: Al Parker, Jack Wrangler, Scott O’Hara…
A tecnologia era rudimentar. A imagem e o som eram fragmentários. As paisagens e as cenas entre sexo tonavam-se quase oníricas e irreais. As cores eram vivas, nalguns casos, com contrastes acentuados e muito ruído. Os corpos ficavam laranja, e os cabelos claros incandesciam. A música preparava o prazer, repleta de ruído, e as vozes eram ríspidas e cortantes.
Era o possível e era tudo e muito. Os cinemas enchiam, tornavam-se palco de novos enredos, símbolos de uma cultura marginal, desafiante, libertadora e libertária. Uma esquina era um encontro. Não se podia rebobinar, nem deixar na pausa, nem fazer loops. O filme corria. Um rio jorrante de êxtase. Nas costas, o projetor tiquetequeava a película nas bobines e lá fora, antes, no foyer, os bilhetes eram comprados em dupla ou isoladamente. As casas de banho, lugares de prazer anónimo. Buracos de glória.
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Vem este longo preâmbulo a respeito da exposição My Favourite Things, de João Gabriel, que recorre à pornografia para a sua produção artística e relança, entre outros assuntos, a figuração e a pintura no debate da arte contemporânea.
Grande parte do trabalho artístico atual é estéril de tão abstrato e hermético que é. Inescrutáveis, as obras de arte deixaram de seduzir e chamar à emoção, ao sentimento. Não se pede sentimentalismo, pede-se, talvez, alguma familiaridade na arte da complexidade humana interior. As várias pinturas de João Gabriel apelam a isso e interpelam-nos com um olhar cuidado no meio de tanta ação: o toque, o gesto, a posição, o desejo, o prazer. O amor. Mesmo que encenado. O cliché.
As figuras não são percetíveis. Há na pintura do artista algo que não é evidente e explícito na pornografia a que recorre: a sobreposição de planos íntimos, a sugestão, a transparência do ator em se expor frontalmente (ou de traseiras), o início apaixonado, o fim mecânico, repetitivo e biológico da foda, do sexo, do fazer amor, os corpos que se fundem num amontoado de linhas e manchas. Nesta perspetiva, as obras são a tradução do invisível, das camadas subcutâneas e internas.
A atenção à atmosfera. Os objetos, a decoração, a ambiência, as janelas, o claro-escuro das silhuetas que sugerem luz. As paisagens de praia, imensas. Um certo enui juvenil. O banal.
Do ponto de vista temático, quando comparadas com a exposição dos Jovens Artistas EDP, My Favourite Things não apresenta grandes variações para além de um olhar mais atento ao assunto. Mas há uma diferença no recurso aos suportes que sugerem uma precariedade inerente a essas temáticas. As peças ora são pintadas sobre tecido de tela gasta que deixa a pintura numa espécie de impermanência transparente, ora sobre papel de contornos imprecisos. Também o abandono da saturação a favor preto e branco é uma novidade. Pequenas diferenças que caminham numa maturação plena de um artista ainda muito jovem, com primeira exposição a solo agora na Galeria Boavista da EGEAC, depois de várias conjuntas e um pequeno estágio preparatório e exclusivo no Bregas.
Mas as figuras. Os corpos. Os indivíduos que se adivinham.
Não há olhos. A fisionomia dos rostos é a que a nossa mente lá projetar. A imaginação oferece a estas pinturas uma hipótese de desejo escondido e, inversamente, as pinturas dão à imaginação a satisfação plena. Neste jogo não há carne, não há fluidos. É tudo muito platónico, mas não menos real. É antes a ansiedade entre o real e o irreal, entre o desejo e o possível. É a arte da figuração.
É possível que os modelos usados (a propriedade do verbo) por João Gabriel já tenham morrido. De facto, por vezes esquecemos que aqueles modelos são reais. Foram. O vírus veio para carcomer os corpos.
Martin Amis, numa das suas obras, associava os atores pornográficos a gladiadores. Gente que sofre pelo prazer alheio, que existe para os nossos mais recônditos impulsos. Sacrificaram a vida por um trabalho manual a sós. Um suspiro, um contrair de músculos, um revirar de olhos. E depois acaba. Neste contexto, esta é uma exposição que carrega, inadvertidamente, todo o peso de uma cultura e de uma comunidade (talvez) que, não obstante a sua estridência garrida, tem sido pautada por duros momentos de solidão, melancolia e tristeza. A existir, a cultura queer é o mais cabal princípio dionisíaco da natureza e da natureza humana. Sparagmos, dilaceração, violência, carne, morte.
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É tudo muito humano em My Favourite Things porque a pornografia é tão ou mais humana que muitas outras artes. Não é refinada, não é objetivamente bela. É suja. Mas isso não faz com que seja menos verdadeira, sincera, autêntica, o que preferirem.
E João Gabriel soube vê-lo.