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Três linhas, um canto vezes quatro. E uma paisagem. – Susanne S. D. Themlitz na Galeria Vera Cortês

Importa lembrar a tese do fim da pintura, essa que nasce e renasce, uma e outra vez, reafirmando o seu potencial construtivo. Por certo, transporta o gesto criador que se lhe nega, desde logo, pelo cariz fatalista da própria designação. Afinal, a tese do fim da pintura aponta sempre, a cada nova reformulação, no sentido do esgotamento de uma determinada doutrina da pintura, não propriamente no sentido da sua absoluta extinção. Pois que o discurso sobre a morte da pintura tem contribuído para a sua reanimação, promovendo um novo olhar sobre si própria e garantindo, desse modo, a sua sobrevivência.

Ei-la, ainda, a pintura. De facto, não tem como nem por que morrer. Acontece que a pintura resiste mesmo depois da pintura, além de toda e qualquer pintura, já não necessariamente – mas ainda que seja – pintada. Themlitz trabalha também sobre a tela, mas pensa a pintura para lá da sua espessura – ou da que habitualmente se lhe atribui. Isto é dizer que a desdobra para lá do plano, contrariando a sentença de Greenberg. Três linhas, um canto vezes quatro. E uma paisagem. De novo, essa picturalidade que transcende a bidimensionalidade, que supera o princípio da planitude. No limite, ao encontro da escultura. Ei-la, em todo o caso, a pintura.

Trata-se aqui, antes de mais, de uma picturalidade que reconhece – e celebra, aliás – a espacialidade: a artista declara a pintura como uma forma de expressão inevitavelmente espacial – implicando também, de algum modo, uma dimensão temporal. Isto significa que a projeta no espaço e no tempo, sempre a parte de um todo, uma força acionada quando em relação, por via da contaminação que se estabelece sob um determinado contexto – o da própria exposição, entendida como um território de contágio. Themlitz evoca Zumthor – ou, mais concretamente, a ideia de que a atmosfera se constitui como a qualidade maior da arquitetura. Interessa enquadrar, a propósito, o conceito de Stimmungsraum e a proposta de Dorner. Pois que a sala de exposição compreende um espaço atmosférico – ou mesmo aurático – sempre para e na iminência de ser reativado por quem o habita. Com efeito, uma pintura sempre para e na iminência de ser reanimada e redescoberta, uma e outra vez, pelo olhar do espectador.

Três linhas, um canto vezes quatro. E uma paisagem. convoca uma sistematicidade intrínseca, mesmo quando se afigura no limiar da assistematicidade, mesmo quando em direção ao caos. De referir que esta grelha não é necessariamente visível, talvez nem se desenvolva além do plano da virtualidade. Contudo, persiste em cada detalhe, no mais assistemático detalhe: toda e qualquer mancha ocupa o lugar que lhe é devido, a que pertence desde sempre, mesmo antes desse encontro primordial entre a extremidade do pincel e a superfície da tela. Themlitz concretiza uma correspondência irremediavelmente anterior, porventura inata, que precede o próprio ato pictórico.

A formulação titular enfatiza a singularidade do conjunto: mais ou menos subversivo, este fazer cumulativo traduz uma sensibilidade própria, inerente a cada peça, que lateja em cada peça, efetivada sob uma determinada concertação formal e cromática, uma articulação absolutamente certeira, dita no ponto, que fixa o momento exato da maturação pictórica, o instante da sincronia. No fundo, uma só pintura, uma única paisagem – a que o espectador constrói, por acumulação, a partir da informação visual que se lhe oferece.

Porém, está em causa não apenas a visualidade, mas também a invisualidade do enunciado. De acordo com o texto da folha de sala, a pintura de Themlitz compreende “[…] essa aptidão ekphrasística de projeção poético-narrativa e, ao mesmo tempo, a de multiplicação visual”. Ora, o desdobramento da pintura decorre de uma excecional capacidade para afetar sensorial e emocionalmente o espectador, por sugestão, a partir do indício – uma relação afetiva, deveras íntima.

“A dificuldade reside em reconhecer a origem dessa familiaridade visual e háptica […]”, em identificar o referente da mancha, tão distinta, tão distante, mas simultaneamente tão familiar. Por um lado, o confronto com o desconhecido, essa forma estranha, como que extraviada no cosmos. Por outro, a euforia da revelação, a permanente epifania. Isso de mergulhar na pintura, descobrir a cadência da coreografia pictórica: um cinzento inaugural, o da tela e o da pedra, a persistência daquele azul, o vermelho que pontua, aqui e ali, invariavelmente ao alvo, essa distribuição irrepreensível, iluminada – a tinta, o gesso, a rocha, sempre a sensualidade da matéria.

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos – Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o paradigma da derivação imagética a partir da imagem que deriva no constelar de uma dinâmica para-artística em Portugal (2016 —)».

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