Que boa ideia, virmos para as montanhas
Todos temos esse lugar onde a ausência de claridade nos permite ver as estrelas, a ausência de ruído ouvir o vento na seara – ou o “silêncio mais profundo quando os grilos hesitam”, diz Cohen –, onde a ausência de excessivo nos permite ouvir o eco dos nossos pensamentos.
Muita gente foge desse lugar porque essa é uma voz que pode dar insónias – assim acontece com André – e como disse Sophia, a noite é o dia das coisas. E então a madeira do chão range, a luz da lua invade a sala e o rádio anuncia cataclismos que tememos prever.
A ser casa – lugar ocluso – há um paradoxo na sensação de infinito que esse lugar instiga. É fácil imaginar a sua imagem como uma alegoria à relação de amor. Nessa casa sem sono, construída e iluminada de forma tão fiel ao essencial por Rui Seabra, André e Leonor dançam no breu da noite. Ao som de canções do passado e da imaginação de Isabel. O riso cala a tempestade lá fora. André quase se esquece da culpa.
E então Isabel bate à porta.
São duas da manhã e o tempo suspenso nos ombros de André.
Isabel entra e traz com ela o frio da montanha.
Leonor vai buscar lúcia-lima. O chá provoca aquela sensação de calor no estômago de que tudo vai ficar bem. No entanto, o tabuleiro, em ponto de equilíbrio periclitante, transmite uma inquietação permanente. Pode cair a qualquer momento.
Porque vieste, Isabel? Por André? Para ofereceres os teus crepúsculos aos outros? Para que Leonor possa “dar um nome ao criminoso, uma cara ao assassino”? Para reveres nos seus olhos como é alguém olhar-te como se visse o mundo? Como naquele dia, ao fundo da rua.
Isabel parte. André e Leonor ficam.
Quanto a esse “abismo como contrapeso do mundo”, que será porventura o amor, ficamos sem saber se terá ido, se terá ficado, se será um equilíbrio de três ou mais forças.
Na procura de respostas, Guilherme Gomes, autor e encenador desta vinda para as montanhas, cita Cohen, Barthes, Bergman, e até a Bíblia, enquanto invoca tantos outros na memória de cada um, de Béla Tarr a Sílvia Perez Cruz (no meu caso), mas é no silêncio das personagens que cada um poderá ouvir o que entender. Bernardo Souto, Nídia Roque e Rita Cabaço desenham magistralmente esse silêncio. Guilherme terá percebido que, no que toca a falar de amor, é esse o caminho mais autêntico, pois que nele, por mais casas que se desenhem, se construam e se destruam, nunca haverá respostas fechadas.
E então os pedaços de laranja, enquanto o sol levanta, anunciam a frescura de um novo dia. Quanto ao vento que passa, diz Caeiro “que é vento, e que passa / e que já passou antes, / e que passará depois”. Sabemos que nunca é o mesmo.
Guilherme Gomes foi o Hamlet de 22 anos que ao lado de Luís Miguel Cintra, durante 4 horas magníficas, encerrou as portas do Teatro da Cornucópia, em 2015. Que boa ideia, virmos para as montanhas é a terceira criação do Teatro da Cidade, fundado nesse mesmo ano por Guilherme, Bernardo, Nídia, Rita e João Reixa, aqui assistente de encenação. Todos eles fizeram parte desse último espetáculo onde Cintra se despediu dos palcos, na certeza de os deixar em boas mãos.
Que boa ideia, virmos para as montanhas estará em cena até 29 de abril, de quarta a sábado, às 21h30 e domingo às 16h30, no CAL – Primeiros Sintomas.
Ir será sempre uma boa ideia.