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Leveza ou Peso? Saraceno vs. Kundera

“Será o peso atroz e a leveza bela?” (Kundera, 1983)

Num primeiro instante, a obra de Tomás Saraceno diz-nos que sim. Efetivamente, a leveza das suas obras, o ar incorpóreo, diáfano, das suas peças esvoaçantes são apelativas e consubstanciam-se em nós em desejo de igualdade: quero ser assim, leve, solto, uma folha de plástico iridescente a levitar no ar; quero que os meus olhos se elevem, vejam o mundo de cima, no limiar da existência terrena, perto de outra existência estelar, universal, cósmica.

O artista dá ao homem a possibilidade de se elevar, de ascender. A arte, e a arte de Saraceno, é um exercício de ascese. Também político, também social, também ecológico. Mas sobretudo espiritual, estético. Ascendemos à beleza. Soltamo-nos do chão e subimos ao lugar supraceleste. Ou quase: como o próprio nos lembra, há na atmosfera uma camada que muda a condição física da levitação e não permite subir mais sem o recurso mecânico.

Ar e sol. Vento e luz. Agitação e sombra. São estes os elementos fundamentais de trabalho de Saraceno, sempre com o homem e a sua complexa existência na Terra como panos de fundo. Serão análogos, certamente, e, como foi referido, partem de um desconforto e desagrado da situação planetária em desagregação: as questões urbanas, económicas, ambientais, políticas. Mas há uma latência larvar na obra deste artista que radica no fardo do existir, na ansiedade e tensão da vida quotidiana na Terra. A obra parece reportar-se mais a uma ontologia do homem, do que à sua política ou ecologia. O desejo de fugir, de escapar, é por demais inevitável. Construir algo superior, nas nuvens; corrigir o passado e os erros.

E outra vez ainda: “Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?” (Idem)

Em The Poetic Cosmos of the Breath (2013) a leveza da instalação conduz à absoluta rendição. O Belo afirma-se na rutura, na oposição à mundanidade. Não é subjetivamente Belo. É objetivamente Belo. Mas também é vagamente feérico. E fugaz. Um sopro. De facto, a força da obra de Tomás Saraceno vive desta ambivalência e do estado impermanente da vida e da arte. “O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. (…) Em contra partida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semirreal e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes” (Idem).

Como resposta a estas e outras interrogações que Milan Kundera levanta em A Insustentável Leveza do Ser (1983), o artista não se incomoda e compromete-se: “leveza, sem dúvida”. E ainda que a resposta seja ambígua, talvez seja compreensível no seguinte enquadramento: levar o incomensurável fardo da vida sem um escape, sem uma transgressão, será uma via direta para a loucura, a autoaniquilação. E a arte pode oferecer a salvação. Ou, em alternativa, a fuga.

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Formado em arquitetura, Tomás Saraceno situa a sua prática entre a arte e a arquitetura. “Estou sempre a tentar juntá-las”, explica-nos “A arquitetura pode encontrar novas expressões para a arte; a ciência, novas práticas para a arquitetura e a arte também”. Procura antes “criar novas disciplinas, novas práticas, uma ecologia de práticas, como Isabelle Stengers refere”. Trabalha nas margens, nos limites dos vários saberes. Na contaminação. Mesmo que isso implique sair da “zona de conforto do mundo da arte. O Aerocene (2015) o que é? Uma fundação, uma obra de arte? Eu não estou interessado no meu nome. Às vezes é importante recuarmos e deixar que outros se cheguem à frente.”

“O mundo da arte é puramente sobre o ego. E eu estou interessado em por vezes perder a zona de conforto. É fundamental explorar outros modos, outros lugares, que desconhecemos porque estamos demasiado protegidos pelo establishment do sistema da arte. Que é impressionante! Temos os museus, os diretores, os curadores, as galerias… Mas, lá fora, as pessoas interpretam tudo de maneira diferente”, sublinha Tomás Saraceno.

Nesta perspetiva, o trabalho colaborativo é da maior importância e indispensável para compreender a dimensão do pensamento do artista. O atelier é um lugar de partilha, de confluência de visões, de comunhão. Entra arte, entra arquitetura, engenharia, ciência, filosofia.

A exposição Um Imaginário Termodinâmico, na Sala Oval do MAAT, não nos dá acesso a esse processo construtivo fundado na experimentação e no diálogo entre pares. A exposição afigura-se (aparentemente) finita, quando, na verdade é cambiante. O olhar, o tempo e a performativade do corpo no espaço informam novas perceções continuamente, novas hipóteses – infinitas combinações e discursos. “A arte estende a forma de percecionar os objetos ou os fenómenos; atrasa o entendimento sobre as coisas. Deixa ver-nos a mesma coisa, mas noutro ângulo”, diz-nos o artista. As obras têm temporalidades diferentes, reflexo de uma construção a vários tempos, a vários ritmos, camadas, mas também porque a ativação pelo observador é também ela sincopada e pautada de movimentos, andamentos e expressões particulares. É uma dupla comunhão: na sua conceção entre atelier e museu e na perpétua transformação entre aqueles que a vêm, persentem e perscrutam.

“Desenhei um, dois, três modelos. Quando cheguei aqui, mudei tudo. Horrível! Porque só aqui percebemos o espaço, a luz, a escuridão. Estou sempre a tentar encontrar o projeto. E por vezes perdemo-nos e acontece acharmos uma sombra que transforma tudo e torna a obra inacreditável!”

Tal como Isabelle Stengers advoga para a política – ou para a cosmopolítica –, Saraceno propõe uma arte para abrandar. A língua portuguesa tem a peculiaridade de congregar dois significados na palavra tempo. Tempo tanto pode referir-se ao chronos, ao tempo da história, do cosmos, como pode referir-se à meteorologia. Muitas das suas obras estão dependentes desta dupla relação com o tempo.

“O Aerocene está muito dependente do vento. Mas também a obra de Sol Lewitt, no meio do deserto. Estamos sempre à espera que a tempestade venha. Se é que vem… E isso muda muito a forma como percecionamos os objetos e as obras”, lembra-nos. A natureza rege as suas expressões e apresentações, as vivências que delas retiramos e a própria perceção. Os elementos são absolutos e o dínamo da sua arte. E é deste modo, o projeto open-source Aerocene (2015) faz um pouco a síntese da obra do artista ao conciliar a comunidade global com esta noção de ecologia total.

Um Imaginário Termodinâmico, por seu lado, é uma interpretação das palavras tanto de Stengers como de Latour, ao formular uma visão de futuros possíveis dentro de um planeta saturado e diversificado, longe de um mononaturalismo ou de uma cegueira antropológica que põe o homem como espécie dominante e dominadora. Não há um universo, mas um pluriverso. As geometrias de Saraceno são espaços moldados de acordo com os meios possíveis naturais, feitas por um homem sincronizado com a natureza, passivo na sua existência, uno com os elementos: “tornar-se vento, quietude em movimento”, refere Saraceno buscando o nome de uma obra de 2016. Contudo, desconhece-se o que aqueles autores virão a escolher como princípio da vida: peso ou leveza.

A exposição propõe uma regeneração através da imaginação. Subjacente a isso, a aniquilação a haver. Não há cores. O sonho, a imagem imaginada, é monocromático e desprovido de saturação. O trabalho que o artista expõe são sombras, objetos reduzidos à sua bidimensionalidade: linhas, pontos e planos orbitantes nas paredes ovais da galeria, girando de acordo com uma força centrípeta que bem podia ser o visitante. A obra é uma órbita de sombras, não tanto os aparentes sólidos platónicos ou os balões construídos. Há reflexos bruxuleantes, massas levitantes infladas a ocupar o vazio imenso da galeria.

É possível que Saraceno escolha a leveza, mas a vida pressupõe os dois polos antagónicos que se têm vindo a descrever e as contradições misteriosas que geram. E o que é positivo, afinal? O peso ou a leveza? O branco ou o preto? As leves utopias sucumbem ao pesado princípio da existência e corrupção humanas. (Mas em Aeroceno, balões negros e amorfos flutuam no ar.) A cosmicidade do mundo assenta não apenas em princípios gasosos, mas também líquidos, e também sólidos.

Voltamos ao princípio.

Num primeiro instante, a obra de Saraceno parece leve. Num segundo instante, depois do peso do corpo percetivo que volta à mundanidade e à frustração da impossibilidade em ser-se totalmente ar, não há como ter certeza disso.

A existência é áspera. A obra deste artista não. Que propõe, então, Saraceno: fuga, compromisso utópico ou combatividade pesada?

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“Não era o sopro de uma respiração ofegante, não era o sopro de uma respiração difícil, era mesmo um grito. Gritava tão alto que Tomas teve de afastar a cabeça da cara dela (…). Não era uma expressão de sensualidade. (…) O grito de Tereza, pelo contrário, era para anestesiar os sentidos (…) O que gritava nela era o idealismo ingénuo do seu amor que pretendia ser a abolição de todas as contradições, a abolição da dualidade do corpo e da alma e talvez mesmo a abolição do tempo.” (Kundera, 1983).

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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