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O Deus da Carnificina desce à Trindade

Em O Deus da Carnificina, os intervenientes podiam estar fechados num espaço qualquer, tal fenómeno Big Brother transportado para aqueles filmes de terror em que aguardamos expectantes saber quem vai ser o último sobrevivente da “casa” ou quando vai começar a cena de canibalismo. Mas não: é de livre e espontânea vontade que os dois casais desta história se reúnem na casa de um deles e que a apenas abandonam passadas horas de transgressão social. Há um prazer mórbido que os leva a ficar, como se aquela sala de estar fosse de repente o espaço de catarse ideal para se despirem de todos os hábitos acumulados em anos de “educação”. Enfim, terapia espontânea de grupo no seio de uma classe média.

A razão do encontro? Os seus filhos de 11 anos andaram à porrada. Como pessoas civilizadas, há que conversar para se decidir a melhor abordagem a utilizar perante a situação. Há que descortinar responsabilidades, repartir custos, declarar arrependimentos. O que começa com o habitual chá – imagino que das 5 – e uma tarte que por misturar pera e maçã indicia já que o anfitrião não tem o mesmo refinamento que o convidado, vai gradual e exponencialmente tornando-se numa carnificina de brandos costumes. A partir da primeira discórdia, as palavras polidas vão sendo substituídas por insultos e a diplomacia pelo desconforto visceral de quem passa a atacar para se defender. Inicia-se uma batalha verbal em que o álcool, o orgulho e os egos feridos vão incitando o cair das máscaras, uma por uma. A urbanidade é substituída pela hostilidade, a sofisticação pelo grotesco. O inicial confronto entre casais dá rapidamente lugar à fácil guerra de sexos para, naturalmente, acabar no habitual “todos contra todos”. Estalado todo o verniz, observamos os intervenientes a nu, e qual não é o nosso espanto! – são todos iguais e estão sozinhos.

Na encenação que Diogo Infante faz da obra de Yasmina Reza (Le Dieu du Carnage, 2006), as crianças nunca chegam a fazer parte da cena. Pois não nos iludamos: esta peça não é sobre aquilo que os pais são capazes para defender os filhos. É sobre a hipocrisia do comportamento humano. Podia também ser uma caricatura a educações várias que não passam de pretensões de bons costumes e que, quando expostas a um escrutínio, se revelam desprovidas de qualquer valor. As personagens são capazes ainda de lembrar as de Woody Allen quando se agarram a uma força anímica aleatória para fugirem de um sentimento instalado de mediocridade. Como qualquer boa comédia, as interpretações podem ser muitas e o humor é garantido.

O Deus da Carnificina – que Roman Polanski tornou mundialmente conhecido com a sua passagem para cinema em 2011 – estará em cena no Teatro da Trindade INATEL até dia 29 de abril. Diogo Infante, Jorge Mourato, Patrícia Tavares e Rita Salema garantem 90 minutos de diversão contínua!

Zara Ferreira (n. 1988) é arquitecta e mora em Alfama. Foi investigadora do projecto EWV_Visões Cruzadas dos Mundos, colaborou com o atelier Tetractys Arquitectos e participou na representação portuguesa na 14ª Exposição Internacional de Arquitetura, Bienal de Veneza de 2014, também como copy-editor do Journal Homeland-News from Portugal. De 2014 a 2018, foi secretária-geral do Docomomo International (the International Committee for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement) e co-editora do Docomomo Journal. Entre Lisboa (IST) e Lausanne (EPFL), está actualmente a fazer doutoramento sobre estratégias de preservação dos conjuntos habitacionais do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa. Nas horas vagas dedica-se à viagem, ao teatro, à escrita, à fotografia e ao que mais o acaso lhe vai pondo na frente.

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