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Espetáculo / Poder / Mass Media – Antoni Muntadas na Cristina Guerra Contemporary Art

O que é hoje a obra de arte senão um produto do mais lúcido cinismo, da mais cínica lucidez? Houve um tempo em que se evocou a inocência, em que se admitiu o descomprometimento, uma certa distância. Diga-se a criação sem causa, a possibilidade da renúncia. Houve um tempo em que se acreditou que uma imagem era só uma imagem – inevitavelmente detida na sua quadrangularidade, nada mais que uma criteriosa distribuição de pigmento sobre a mais polida superfície, a mancha, a impotência dessa mancha. Entretanto, já tudo é outra coisa – em potência, por excelência, de certo modo. Isto significa que toda e qualquer imagem se constitui como um indício, sempre o fruto de um determinado enquadramento, a evidência do seu próprio contexto. “O que se passa é que acredito muito no contexto […]”, diz Antoni Muntadas em resposta a José Cabrita Saraiva, a propósito da exposição que o traz a Lisboa, patente na Cristina Guerra Contemporary Art.

Espetáculo/Poder/Mass Media resulta de um projeto de recontextualização da imagem, o mais poderoso instrumento da sociedade espetacular. Afinal, encerra em si todo um sistema: é o princípio, o meio e o fim do espetáculo. Trata-se aqui de um processo de alienação fundamentalmente imagético: o indivíduo que se separa do seu corpo, que se funde com a imagem, que já só existe por intermédio da imagem, produzindo e consumindo sob o paradigma da representação, consciente ou inconscientemente, em permanência e com a efervescência tão característica da dinâmica espetacular. Por certo, “o que aparece é bom, o que é bom aparece” – mais de cinquenta anos depois, uma e outra vez, sempre Guy Debord.

Pois que o artista trabalha a partir dessa sedimentação imagética, recusando a pretensão criacionista, convicto de que já tudo foi inventado. Acontece que cada trabalho surge no âmbito de uma investigação particular, de uma construção pessoal em torno de um determinado tema – neste caso, a dimensão visual do dispositivo mediático. Antoni Muntadas recolhe, analisa e relaciona a informação visual que veicula – e que domina, de resto – o discurso mediático. De acordo com o artista, a sua intervenção tem que ver, sobretudo, com a edição: o reposicionamento de uma imagem compreende sempre uma decisão e é de decisão em decisão que a obra toma forma, que uma série se afigura enquanto tal. “O editing faz o trabalho […]”, adianta nessa mesma entrevista. Isto é dizer que está em causa um ciclo de apropriação infinito, sendo que toda e qualquer imagem se apossa daquela que a precede, corroborando ou contrariando a mensagem que lhe está subjacente e contribuindo, assim, na construção de uma outra narrativa – mais ou menos paródica, de algum modo subversiva.

Na galeria, a exposição propriamente dita. Portraits, antes de mais: um conjunto serigráfico de 1995, em que cada impressão resulta do zoom in num registo fotográfico de uma qualquer figura mediática desse período, parcialmente enquadrada e, por isso, dificilmente identificável; em frente, a projeção de um vídeo de 1994, filmado em Marselha, que percorre o repertório gestual de um outro anónimo, um político “que gesticulava muito”, ao longo de sete minutos, sempre ao ralenti, a voz arrastada, um rugido indecifrável, “do gesto erótico ao gesto de negociação”. É o gesto enunciado – ou denunciado, talvez – como um artifício do poder, ao serviço de uma determinada estrutura de poder. Trata-se, em todo o caso, da recontextualização de um discurso necessariamente mediatizado – fotografado, filmado, imageticamente legitimado. Ora, o artista propõe uma releitura do cenário espetacular pelo reenquadramento da figura mediática, desviando a atenção do espectador noutro sentido que não o original: o microfone como um símbolo da autoridade do entertainer, a boca, a mão que fala, o que aparenta aniquila o que efetivamente é, em direto, essa experiência do extraordinário, uma agenda televisionada. On Translation, logo de seguida: On Translation: FIFA, uma composição fotográfica de 2014; On Translation: Celebracions, a projeção de um vídeo de 2009; On Translation: Himnes, um outro registo audiovisual, este mais recente, de 2016. Antoni Muntadas toma o futebol, porventura o mais lucrativo negócio da nossa paisagem mediática, no plano do espetacular. Interessa aqui a dimensão linguística, ritualística, identitária, social e cultural desse evento: todo um sistema de codificação, o abismo entre o homem e o animal, o princípio da civilização, a eterna busca pela pertença, a idolatria, o fanatismo, a violência, a origem do mal e a construção do medo, um mecanismo de controlo excecionalmente eficaz, o poder da publicidade, do marketing, quanto dinheiro em campo, a mais eufórica celebração – o hino, um golo, o espetáculo por toda a parte.

No acervo, um prolongamento da reflexão. Architektur/Räume/Gesten II, um trabalho desenvolvido entre 1988 e 2017, a representação serial da estrutura tripartida de uma decisão: um edifício urbano, um espaço decisório e um gesto negocial, evocando a arquitetura como um símbolo do poder político, económico, corporativo, institucional, irremediavelmente mediático. De novo, uma questão de enquadramento, a importância do framing, quem fica de fora, quem está por dentro, a iminência da ação, do facto, o que é e o que não é verdade, sempre um ponto de vista, a parte de um todo, um seu vestígio: sob a lógica espetacular, “o verdadeiro é um momento do falso”, esclarece Guy Debord. Por fim, e em jeito de conclusão, a mais direta interpelação ao espectador: How Much?, de 2013, e Para Quem?, de 2014.

Attenzione: la percezione richiede impegno”, lembra o artista.

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos – Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o paradigma da derivação imagética a partir da imagem que deriva no constelar de uma dinâmica para-artística em Portugal (2016 —)».

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