Tapeçarias de Portalegre | A Água de S. Mamede
O Verão ia avançando, um calor suportável à sombra… mas ao sol, percebia-se como a seca prolongada ia mostrar todos os seus defeitos.
Um homem maduro, nos seus vinte e oito anos, vindo do tanque das traseiras do Convento de São Sebastião, botas sujas de lama, entrou na sala, e tirando os óculos, limpou a testa com o lenço que tinha no bolso.
Lentamente, abriu a gaveta da secretária e tirou outro, fresco – olhou pensativo pela janela. Num tom resignado mas decidido, lançou da porta do escritório:
– Chamem o tintureiro! É preciso mudar as receitas; já não há água que chegue e vamos passar para a água da Câmara… Quem fazia esta declaração era Guy Fino, empresário astuto e enérgico, estávamos em 1948.
Acontecia assim nos anos de seca em Portalegre… era preciso afinar as misturas e apurar de novo os banhos. A arte da tinturaria dependia da qualidade e quantidade de água e o tanque que alimentava a fábrica já só tinha lodo e lama. A água da serra já não era suficiente. Sim, a Fábrica de Lanifícios de Portalegre e outras indústrias da família Fino usavam a água da serra de S. Mamede!
Claro, quando esta descia da serra, para os espíritos simples, era considerada de graça. Esqueciam facilmente, os investimentos em terras, minas e mesmo quintas. E não lhes custava o pagamento mensal a trabalhadores esforçados, conhecedores das passagens subterrâneas entre minas e mães d’água, tanques, e a manutenção de tubos, roscas e válvulas, que era preciso controlar. Mas sim, a água de S. Mamede descia por gravidade. Essa era a natureza que fornecia.
– E chamem cá o Ti Feiteira! Preciso de ver com ele como vamos fazer! Reforçou o empresário, enquanto tirava do armário uma pasta com documentos.
José Feiteira era quem conhecia os caminhos da serra, as minas e túneis que desciam monte abaixo, e por onde ele entrava até sair do outro lado. Controlava as torneiras e a rede de tubagens e canalizações – garantia que a água descia. A pasta preta tinha a lista das encomendas e dos prazos a cumprir. As cores, agora era com o chefe da tinturaria que iria alterar e fazer as afinações para as receitas correspondentes.
Era um dos segredos dos homens dos tecidos. Pelo menos desde a morte do Cardeal Rei Henrique I, em 1580, que se reconhece a qualidade dos tecidos tingidos em Portalegre, havendo muita documentação sobre a tinturaria do preto, e de como foi o fornecimento do luto, daquele que antecedeu a era dos Filipes.
Outra referência de peso, os pintados do Marquês de Pombal, outro visionário que depois de expulsos os jesuítas, mandou ocupar o convento e contratou tintureiros franceses para reforçar as nossas equipas. Sempre na busca de mais cores, mais vivas e persistentes. O mais famoso chamava-se José Larcher e usava das mesmas águas de S. Mamede.
Por certo, por causa do granito da serra e pela bacia natural, quase no centro da cidade, que viria a ser tanque, mais tarde gerido e acarinhado pela família Fino.
Quando me apercebi desse legado, subi à procura da ideia e engenho de Guy Fino, do seu interesse pelas nascentes, fui a S. Bento encontrar os sinais dessa rede privada usada para recolher as melhores águas, Quinta Branca, Quinta do Mealheiro e sobretudo Maguetes, onde num edifício semi-soterrado, a mãe d’água, ainda acolhe e canaliza até Portalegre.
Mas a tinturaria, a fixação da cor nos tecidos, e particularmente na lã, nem só de água se faz, por isso aqui deixo o convite para falarmos de outras alquimias que nos irão levar a milhares de cores.